7/28/2003

O BOATO





Ao longo das crónicas que quinzenalmente são publicadas, acredito que os meus leitores tenham muitas vezes suspeitado da verosimilhança das minhas histórias. Pois bem, a seguinte história não só é verosímil, como verídica.

Nado e criado na Póvoa, o meu quotidiano infantil era circunscrito ao Largo da Praça, com esporádicas incursões aos bairros ?inimigos?: As Escadinhas, o Alto, o Cinema ou a Rua A. Nas tardes em que não havia nenhuma jogatana ou incursão bélica em território inimigo, ficava-me pela Praça. Uma das minhas actividades preferidas era a de atirar diversos objectos aos homens que, no intervalo do dominó, se punham a apanhar Sol em frente à sede da bola. Colocado estrategicamente por detrás do muro do quintal do meu avô, aproveitava o ângulo favorável para bombardear o inimigo sem que ele soubesse de onde vinha o ataque. Usava diversos tipos de munição, desde ração de pombo a milho, mas sem dúvida que a minha preferida era a uva, de preferência calibre 3, cápsula roxa, de fabrico ribatejano. O ataque continuava até ser interrompido pela minha avó, que me chamava ?judeu? e ?maltês?. Descia então a Travessa Carvalho Araújo, com a ?carinha na água? para ver no terreno os estragos provocados pelo ataque. Passava entre as vítimas, discreto e silencioso por fora, em plena euforia por dentro, que regressavam, em debandada às bases, leia-se Sede da Bola e Taberna do Tí Luís. Ora, numa dessas tardes, igual a tantas outras de vitórias estrondosas, estava um trabalhador (nesse tempo não havia funcionários e muito menos colaboradores) dos TLP, pendurado num escadote à beira da rua, a arranjar os fios telefónicos, quando, de repente, passou um carro e derrubou o escadote. O homem caiu estatelado no meio da rua. Fiquei estupefacto a olhar as tropas inimigas a socorrerem o homem, que entretanto se levantara, ainda contundido e a sangrar da testa. O feroz ?sniper? dera agora lugar ao miúdo assustado, mas depressa percebi que nada de verdadeiramente grave acontecera. Chamada a ambulância, o homem mostrou-se mesmo relutante em ir para o hospital, mas acabou por ceder. Com tanta animação, o estômago do pequeno guerreiro começou a dar horas e eis-me a fazer uma incursão ao frigorífico da minha avó, preparando uma sandes com os chouriços que tinham sobrado do cozido. O Tulicreme (para os meus leitores mais novos esclareço que o tulicreme é o avô do bolicao, mas sem pão) bem podia abanar-se sempre que abria o frigorífico, gritar-me ?Barra-me no pão! Barra-me no pão!?, que eu permanecia fiel à farinheira e ao chouriço de sangue. Com a enorme sandes na mão voltei à rua e ainda não tinha andado cinquenta metros, ouvi um diálogo entre duas senhoras que nunca mais esqueci. Dizia uma, visivelmente perturbada, para a outra: ?Coitado! Quando o meteram na ambulância, já ia morto, com certeza!?. Lembro-me de ficar espantado, tanto ou mais que com o próprio acidente. Eu assistira a tudo e tinha a certeza que o homem não só não ia morto, como estava consciente. Este episódio esclareceu-me um pouco sobre o espírito humano. E gostaria de aproveitar a ocasião para agradecer publicamente ao acidentado, que hoje provavelmente goza duma boa reforma dos TLP, orgulhoso do neto, que está a acabar o curso de engenharia no Técnico e está a pensar casar com a sua namorada de sempre, a Cátia Andreia, neta do vizinho do lado, reforçando que aquele seu acidente não foi em vão. E claro, agradecer à senhora que involuntariamente contribuiu para o meu prudente cepticismo em relação ao mundo.

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