1/24/2004

CONVERSAS DE CAFÉ


Uma das características mais marcantes do português é a sua inesgotável capacidade para falar do que não sabe, do que não estudou, do que simplesmente não conhece.

Quando isso acontece num grupo de amigos, nos balneários depois de uma jogatana de futebol, no cabeleireiro, entre uma mise e uma limpeza de pele ou no café, entre uma imperial e uns tremoços, é perfeitamente inofensivo.

Já não posso afirmar o mesmo quando a tagarelice se verifica em sítios onde era suposto discutir-se de forma séria, até porque se está a representar os eleitores que nos elegeram.

Vem toda esta conversa moralista a propósito das inevitáveis discussões que surgem cada vez que o Governo (seja ele qual for) tenta impor uma taxa, um imposto ou uma propina. Seja na Educação, na Saúde ou nos Transportes.

É então hábito ouvirmos os mais doutos discorrerem sobre o que é a educação, sobre o que é a saúde, sobre o que é a habitação, etc.. E normalmente o que começa como um pequeno exercício de retórica acaba como uma dose de verborreia. São conhecidos os casos de pessoas que não sabendo absolutamente nada do assunto em discussão, conseguem falar palrar sobre o mesmo durante horas, desde que haja uma câara de televisão, um gravador audio ou um jornalista por perto, claro.

Ora, estar a discutir esses assuntos sem abordar a questão de base e que lhes subjaz é o mesmo que eu discutir com a minha namorada se o nosso filho vai ter uma educação católica, apostólica e romana, quando nem sequer ainda fiz uma tentativa séria para o ter.

Quero dizer com isto que a questão básica, a questão que tem que ser posta antes de todas as outras, antes de se discutir o que é a educação e como é que se a financia, ou o que é a saúde e como é que a devemos pagar, é: o que é o Estado? Para que serve? Como é que funciona?

Ora o Estado somos todos nós e manifesta-se nos órgãos constitucionalmente previstos, serve para que quem nasceu no Bairro 6 de Maio tenha, pelo menos à partida, as mesmas hipóteses de viver condignamente, como quem nasceu na Quinta da Marinha e funciona pelo contributo dos mais afortunados em prol dos menos, através de um monstro da Fábula que certamente por não existirem empresas de marketing na altura, se deu o nome de impostos.

Se alguém conhecer outro modelo de Estado e Sociedade, que se manifeste. Eu não conheço e tenho a humildade de não procurar um outro modelo quando este está longe de funcionar bem e deve por isso ser aprofundado.

Enquanto não existir em Portugal um verdadeiro Fisco (outra palavra repelente) que consiga aferir com justiça o rendimento de cada um e que possua mecanismos eficientes para cobrar a parte proporcional desse rendimento para manter o conceito de Sociedade vivo e a fazer sentido, todas as outras discussões são inconsequentes, inúteis e idiotas.

Não passam de exercícios de onanismo, que servem de falso fundamento aos governos para, de forma cínica e imoral, irem mantendo a ideia de que governam.

E não há nada de mais injusto que aplicar a igualdade ao que é desigual. Sejam taxas, impostos ou propinas. Ou o preço dos rebuçados.
O ÊXTASE NA CAIXA DE CORREIO


Caros leitores,

Hoje estou particularmente satisfeito. Contrariando a onda de pessimismo que se abateu sobre o País, por causa do PIB (essa criatura bizarra e imensurável) do Pacto, do PEC, da PQOP, diria mesmo que hoje estou radiante.

Tudo porque ao abrir a minha caixa de correio, normalmente cheia de facturas, vislumbrei uma carta do Serviço Local de Finanças. Trémulo, quase febril, apalpei o seu conteúdo, como quem sente pela primeira vez os contornos de um corpo há muito desejado. As minhas mais secretas esperanças confirmaram-se quando desfiz o invólucro: era o meu novo cartão de contribuinte! Johann Strauss entrou subitamente no meu prédio, seguido de uma pequena orquestra; os candelabros acenderam-se. A música invadiu aquele pequeno átrio, em crescendo. Deus existe e apresenta-se em tons de verde. Quase três anos depois de o ter pedido, eis que o pequeno gnomo, que imediatamente baptizei como Manelito, chegava-me às mãos.

Subi as escadas com o Manelito nas mãos, sentindo os meus sinais vitais a voltarem ao normal. Pousei-o na minha secretária e resolvi fazer o que qualquer homem decente faria. Peguei no velho e carcomido cartão de contribuinte e preparei-me para as suas exéquias. Eu sei que os meus leitores vão pensar que sou um sentimental, mas a verdade é que costumo sepultar com pompa e circunstância de Estado todos os meus cartões. Embrulho numa folha de papel de 25 linhas azul, claro, cada um dos que deixam de estar em vigor ou caducaram. Com um esmero digno de funcionário público, tenho uma velha gaveta carunchosa, que serve de Cemitério. Tudo organizado por talhões. Lá está o talhão da ADSE, com 27 inumações; o talhão da Segurança Social, com 12; o da DGV, onde repousa a minha antiga carta de condução, e assim por diante. E no fundo da gaveta, ergue-se, altivo, um velho carimbo preto e sóbrio, ostentando a inscrição INDEFERIDO com orgulho e garbo.

O Manelito passou a andar comigo 24 horas por dia. Tenho-o mostrado a todos os amigos, que o olham com inveja. Gostaria de frisar que são entes como o Manelito que alteram a nossa mundividência de forma imperceptível mas decisiva. Eu já decidi que vou permanecer celibatário ou pelos menos se casar não vou alterar o nome, só para não perder o meu novo amigo. Nem vou mudar de casa. Hei-de ficar nesta até que as paredes caiam, que o tecto desabe e mesmo aí, morrerei de pé, como todo o contribuinte recto.

Se os meus leitores pensam que tudo o que escrevi até agora foi uma gorada tentativa de ironia desenganem-se. Até o subdesenvolvimento tem as suas cores alegres. Se eu vivesse num País com um verdadeiro Estado, em que alterar os meus dados fiscais ou civis fosse um acto simples e de efeitos imediatos, estes pequenos momentos em que simulamos que somos civilizados não existiriam. E perante isto nós só temos duas opções: o atentado frio, seco e certeiro ou a esquizofrenia. Profundas convicções humanistas e anti-belicistas levam-me a escolher a esquizofrenia. Por enquanto.
ULTRA-LEVUR



"A conjuntura apresenta um elevado índice de debilidades sistemáticas induzidas por interaccção de fenómenos exógenos, culminando numa catarse que apresentando sintomas de entropia, não deixa de manifestar um fio condutor que, embora obliterante, tem na sua própria contingência propriedades correctivas e potenciadoras não despiciendas, num quadro de maximização.

Por outro lado a sua própria génese indicia comportamentos periféricos ao óptimo, sendo que através da análise endoscópica nos é permitido concluir pela proliferação de factores de disseminação menos adequados.

Todavia, a imagética estruturante apresenta-se como elemento determinante não só na óptica do observador auto-convexionante mas também daquele que se hetero-parametriza. Pelo que a medição não é instrumento garantido de aferição de resultados."

Eu podia continuar, mas está a tornar-se penoso, pelo menos para mim. A língua portuguesa é de facto uma coisa maravilhosa. Um tipo pode estar horas e horas a falar e não dizer absolutamente nada, parecendo que está a apresentar doutrina. E o mais espectacular é que se o tipo for mesmo bom, ainda lhe pagam.
SUBLOCAÇÃO

Oi! Meu nomi éi Odércio Ipitarangui i pedji ao Sôr Nuno, habituau escriba deista coluna prá mi deixá botá umas linha.

Tchive essa ideia porrqui tô morando aqui i já riparei qui ócês, portugas, taum sempri dji baixo astrau e alguns ficam meismo incomodados quando percebem qui tudo quando é loja de shoppingue tá cheia dji nóis. Aconticeu o mêsmo cum a gentchi há uns anos atráis, quando todas as padaria do Brasiu ficaram cheias de portugas.

Ócês, qui nãum saum birutas dji todo, já devem tê riparado qui à gentji num é só futebolista ou garota dji programa. É.

I tambeim já devem ter riarado qui a gentchi fala portuguêis. Um portuguêis meio gingão, como ócês djizem. E concerteza qui já perrceberam qui nóis somos muitjos, né? Somos 175 milhão, prá ser exacto.

Ora, meismo com toda a probreza i todo o subidisenvolvimento, alguns de nóis tinha qui sair sujeito isperto. Qui creschi pensando em portuguêis, fala portuguêis, si manifesta em portuguêis. Ocês já tchinham dado por isso, não?

Pôr exemplo, o Jorge Amado, qui foi aqueli cara qui deu vida à Gabriela Cravo e Canela, qui já foi vista por russo, chinês i tá chegando até na Polinésia. Ou outro cara qui dji cerrteza já ouviram falá: o Santos Dumont. Ou esse brasuca danado prá brincá dji nomi Carlos Drummond de Andrade. Num há actchividadji no mundo em qui naum esteija um brasileiro mitchido.

Lá nusz States já deram por isso i taum procurando arranjá increnca prá gentchi. Mas num fais máu. O Samba contchinua passando e vai passá cada veis mais. À cultura brasileira é, si naum a única, pelo menos a qui tá dando mais luta à hegemonia do inglês e da cultura anglo-saxónica. E tá botando prá quebrá. Ein portuguêis. Compreende?

Ora ócês, qui taum sempri si lamentando qui o portuguêis tá disaparicendo, teiem qui pôr essas cuca a funcioná. Si o portuguêis naum disaparecê si vai devê a nóis. Qui somos muitos e fazemos um tremendo barulho. Deixa dji sê bicho careta e aproveita à festa, cara, em veis de ficá no seu canto choramingando. A gentchi nein si importa dji ouvir esse portuguêis de ocês, meio caipira.
Saravá!

Odércio Ipitarangui,
Funcionário dji lanchonetchi no shopping Colombo
Meia-direita du tchime da Associação Recreativa da Damaia
Tocador dji tambô no Grupo dji Samba Tudo in Cima
AS ANEDOTAS DO MASCARENHAS (em DVD, CD e Minidisc)

Caros leitores:

Influenciado por essa invasão de contadores de histórias, de stand up comedy, stand down (it's a) tragedy e afins, resolvi publicar as minhas próprias anedotas. O João Marques que me perdoe a publicidade à borla, mas aqui ficam 3 exemplos das anedotas que poderão encontrar no 1º volume.


ANEDOTA 1

O Governo Civil

Existe em Portugal uma coisa chamada Governo Civil, com o respectivo Governador. E serve para quê? Para representar o Governo nos Distritos. E os Distritos, são o quê? Evidentemente são as circunscrições territoriais que servem para...bem, servem para terem Governos Civis! De resto não servem para mais nada. Quer dizer, se Portugal fosse um País tipo peixe-espada, como por exemplo, o Chile, ainda se podia compreender. Ou se tivessemos uma série de ilhas no meio do oceano, vá lá (e nós temos algumas, mas curiosamente nas ilhas não há governo civil). Agora, nós que somos um país minorca, onde se chega de uma ponta à outra em menos de um dia, onde existem telefones, telemóveis, fax, internet, videoconferência, etc., não se percebe muito bem para que é que existem governos civis. Representam o Governo para quê? Para alguma coisa de concreto? Constróiem estradas? Aeroportos? Então cada Ministério não têm uma direcção regional? Se eu estiver chateado com o Primeiro-Ministro escrevo-lhe uma carta, mando-lhe um sms. Para que raio quero eu o Governador Civil? Antigamente ainda serviam para alguma coisa. Autorizavam (ou não) o foguetório tradicional sempre que havia festa no distrito. E faziam outra coisa importantíssima: licenciavam as máquinas de diversão electrónicas (tipo Pacman). Quero agradecer a benevolência dos senhores que foram titulares do cargo aqui no distrito de Lisboa, pelo facto de terem licenciado, aos longo da minha juventude inúmeras máquinas, desde o pacman até ao pinball. O que seria da minha juventude sem esse licenciamento! Mas actualmente já nem o foguetório autorizam. Não se faz. Ah! E fazem outra coisa. Emitem passaportes. E devem emiti-los mais rapidamente do que a telepizza nos entrega a encomenda, a julgar, por exemplo, pelo Governo Civil de Beja, conhecida rota internacional, que só para passar passaportes tem 14 funcionários. Mas não quero ser injusto. O Governo Civil tem pelo menos uma grande utilidade nos tempos que correm. É que normalmente estão sediados em edifícios do Estado com valor histórico e cultural e enquanto assim for, vender esse património é capaz de se tornar um bocadinho mais difícil. A menos que alguém se lembre de os enfiar num qualquer contentor.

ANEDOTA 2

A GNR

Outra coisa engraçada que nós temos é a GNR. Desde que a GNR foi criada, o País mudou radicalmente. Tornou-se essencialmente urbano. Parece que toda a gente deu por isso menos quem devia ter dado. Do quase nada surgiram coisas como a Amadora, Rio de Mouro, cidades inteiras nasceram à volta do Porto e de Lisboa. Ora a GNR é uma força militarizada. Militarizada? Mas nós estamos em guerra civil? Será que existe algum grupo separatista no activo e ainda não demos por isso? Já imaginaram um GNR a descer a Avenida Ernest Solvay, na sua montada, atrás de um tipo numa CBR 600, a gritar "O senhor está detido!"? Quando ele finaliza a frase já o tipo vai no IC2. Mas será que o Estado não tem respeito pelos seus próprios agentes? (pergunta de retórica, claro) É verdade que a GNR tem uma magnifíca banda de música, mas onde é que se vai arranjar instrumentos para todos os mais de 25.000 agentes?

ANEDOTA 3

A NATO

Quando terminou a 2ª Guerra Mundial e tendo em conta a voracidade desse grande amigo dos oprimidos Josef Estaline, foi criada a Nato. E ainda bem. Senão eu hoje chamar-me-ia Igor Mascarenhenko e não estava aqui a abusar dos doces prazeres da democracia liberal. Só que isso foi há mais de 40 anos. Entretanto caiu o Muro. A União Soviética acabou. O único Bloco de Leste que resta é o da selecção russa de voleibol e acho que é um exagero manter uma aliança militar só para pôr na ordem meia dúzia de atletas, por muito altos e fortes que sejam. Ora se a Nato foi criada para fazer face ao Pacto de Varsóvia e este entretanto desapareceu e a Nato continua, acho que Portugal devia, em nome da seriedade, propor a criação da Nato - AMOCOS (Against Martians and Other Creatures from Outer Space - Contra Marcianos e Outra Bicharada vinda do Espaço), porque é mais provável que sejamos invadidos por marcianos que por soviéticos. E já pensaram no merchandising? Mesmo que tudo não passasse de uma encenação, já imaginaram as naves espaciais em miniatura, tripuladas pelo Capitão Antunes, a defender o Terreiro do Paço da invasão marciana, que seriam vendidas no Natal?

Caros leitores, estes foram alguns exemplos do livro, que pela sucessão de anedotas neste país e neste mundo, promete vir a ter um 2º volume. Com dois tomos, no mínimo.