2/16/2006

PROFILAXIA URBANA

Quase como nós próprios, os espaços urbanos têm o seu tempo de pujança e esplendor e tornam-se decadentes e ineptos.

Sem quaisquer pretensões doutrinárias, julgo que, com as suas óbvias diferenças, a Urbanização da Portela e o Bairro dos Olivais são duas realidades que servem de referência para quem gosta de pensar sobre o urbanismo.

Ambas surgiram com a melhor das intenções, foram marcos em termos de intervenção urbana e caíram em decadência. Claro que falar em decadência na Portela ou no 6 de Maio se reporta a realidades qualitativamente diferentes. O projecto, pensado e executado para uma determinada ideia de comunidade não se revelou adequado (nem nenhum projecto urbanístico, por muito bom que seja, consegue, por si só, evitar fenómenos de exclusão ou de delinquência, ou sequer “criar” o espírito comunitário) nem resistiu incólume às mudanças sociais que se verificaram.

Aquelas duas áreas (sub)urbanas tornaram-se inadequadas, deixaram de dar resposta às necessidades dos seus habitantes, numa palavra, tornaram-se anacrónicas.

E é exactamente essa palavra que me surge quando penso na chamada 2ª Fase da Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria. Anacrónico.

As realidades que falei no início, nasceram adequadas às necessidades de então e só depois, com a alteração dos hábitos das pessoas e o surgimento de outras áreas, se tornaram inaptas. A 2ª fase já nasceu completamente desfasada, inadequada ao seu tempo. Não falo obviamente no interior das habitações, no espaço privado, que terá com certeza, o último grito (histérico) da moda. Falo no espaço público, refiro-me ao próprio modelo, à quase ausência de comércio, à disposição dos prédios, olhando desconfiados e de soslaio uns para os outros, da mesma forma que nos olhamos nos elevadores.

Para quem não conheça, não estou a falar de meia dúzia de lotes, mas de uma área com mais população que a maioria das freguesias do Concelho de Vila Franca de Xira.

Não pretende este texto ser um libelo contra quem autorizou tão bizarra esfinge, sem nenhuma causa existencial para além da incúria de uns e a inconsciência de outros.

Pretende antes de mais funcionar como um alerta, para que, criado o monstro se evite que tenha azia.

Quem vai hoje morar para a 2ª Fase, depressa procurará outra zona, porque rapidamente vê goradas as suas expectativas mais básicas. Ou seja, assim torna-se impossível criar qualquer consciência cívica eficaz, porque as pessoas olham para a urbanização como um ponto de passagem e nunca (ou pelo menos raramente) como um sítio para se fixarem, para criarem raízes.

Tudo isto leva à depreciação do valor das habitações e perante o dinamismo que caracteriza a área metropolitana de Lisboa e os novos pólos de atracção (como o aeroporto da Ota) não é difícil imaginar a debandada das pessoas que moram na 2ª Fase, assim como a transmissão dos imóveis entretanto desvalorizados a quem os quiser comprar, passando aquela área a ser habitada não pela garrida classe média, como hoje, mas essencialmente pelas franjas mais desfavorecidas. Como é óbvio, nada tenho contra quem é menos desfavorecido, quem vive em condições de cidadania precárias, mas concentrar quem é mais desfavorecido repele, é contra a natureza do conceito de cidade, forma ghettos, empobrece a vida citadina. Da mesma forma que os ghettos dos ricos, aliás, mas com efeitos sociais mais perversos. Teremos no meio da Póvoa um bairro onde quem não mora lá não passa, ou se passar é porque lá se “passa”. Ora eu não quero uma versão contemporânea do Bairro dos Olivais nos anos 70.

E para que isso não aconteça, é preciso que se actue de imediato. Os poderes públicos, é certo, mas também as próprias pessoas, em relação às quais os poderes públicos devem dar a iniciativa, facilitá-la até, com regras mas sobretudo com bom senso.

Tenho a noção que os recursos públicos são não só limitados como escassos, isto é, não só se esgotam, como não respondem às necessidades actuais. Também por isso, a atitude das pessoas é fundamental e fará toda a diferença, porque não há polidesportivos, parques urbanos, zonas de lazer, aquilo que lhe quiserem chamar, que criem, por si sós, o espírito comunitário e a vontade necessária para que a 2ª fase não se torne num ghetto.

Dir-me-ão que estou a ser alarmista, exagerado, pedante, que a 2ª Fase é só uma zona da Póvoa de Santa Iria, que não é verosímil que se torne, em 10 ou 20 anos, numa zona degradada.

A “zona” é, repito, maior (em termos populacionais) que a maioria das freguesias do concelho. O espaço urbano não pode ser visto como um aglomerado de feudos, mais ou menos fechados. Com áreas públicas degradadas, sem dignidade, insalubres, nas quais as pessoas são incapazes de respirar num ar fétido de tanto regulamento em papel amarelado, de tanto procedimento administrativo inconsequente, de tanta conversa da treta e joguinhos pueris do “agora fazes tu, ou agora faço eu?”, e que por isso se fecham em casas de chão parquet. Até ao dia em que paulatinamente, começarem a sair dos prédios com as malas vuitton de feira e se meterão nos seus automóveis, para nunca mais voltarem. Sem um pingo de pena ou de saudade.



2/01/2006

ACUPUNPTURA MASOQUISTA

Numa tentativa mais ou menos frustrada e pedante de fugir ao circuito dos Centros Comerciais, tive a oportunidade de me deparar com o exercício de auto-medicação, sob a forma de acupunctura masoquista, que de uma maneira menos prosaica se chama gestão do património público.

O Estado, por boas e más razões, tem um património (no caso concreto um património edificado) valioso, que pela incúria de uns (zelosos funcionários) e pelo desinteresse de outros (todos nós), se vai dissipando, com um ritmo e uma metodologia admiráveis. De facto, se fossemos tão rigorosos e metódicos na acção, como somos na omissão, a nossa designação oficial não seria República Portuguesa, mas provavelmente Kongeriket Norge.

A Indep, em Moscavide e o antigo Quartel de Inspecção Militar em Setúbal são dois exemplos que não se amenizam por explicações burocráticas. Jazem, caquécticos, esfarrapados, esvaindo-se em silêncio.

O Estado, na sua ânsia prestativa, foi-se ramificando em organismos, serviços, institutos e tudo o que coube na imaginação delirante de sucessivos e impunes incompetentes. E ao abrigo do instituto da autonomia administrativa e financeira, cada um trata do património afectado como se de verdadeira propriedade se tratasse. Fazem-se guerrilhas cada vez que é necessário passar um qualquer edifício de uma direcção-geral para outra. Baterias de juristas engalfinham-se com pareceres rendados com notas de rodapé em alemão. Não há um único organismo público que seja proprietário de bens públicos, porque simplesmente os bens públicos não são susceptíveis de apropriação. Os bens são instrumentais, funcionais, afectados a um concreto organismo com um determinado fim.

Curiosamente o zelo e sobretudo o apego, esfumam-se ao abrigo de uma qualquer norma de excepção, que de boa fé, presume-se, o legislador entendeu criar, e o património público é alienado ao desbarato, permitindo a alguém fazer uma mais valia indecorosa (nada tenho contra as mais valias, mas a minha tolerância à esperteza saloia tem como limite os fura filas de hipermercado). Segundo a tabela oficiosa, dez mais valias dão direito a uma comenda.

Uma viagem virtual à Direcção Geral do Património é esclarecedora. Como objectivamente não há planeamento nem estratégia, ou pelo menos mudam cada vez que muda o Governo, muitas das vendas em hasta pública ficam desertas, isto é, não aparece ninguém para comprar o que o Estado quer vender.

Como os tais organismos não falam entre si, dão-se situações ridículas, em que, por exemplo, um determinado serviço precisa de um edifício com carácter de urgência, num local concreto e acaba por fazer uma aquisição quando, mesmo ali ao lado existe um edifício público, mas que levaria muito tempo a desafectar, que pertence ao instituto Y, ou simplesmente porque os dirigentes dos dois serviços não gostam, desde o tempo da faculdade, um do outro. Há sempre uma lei, uma portaria ou um despacho protector da gestão danosa, mesmo que sejam do tempo do amigo botas.

Decididamente, o melhor é deixar-me de passeios ao ar livre e ir para o vasco da gama, o colombo ou o diogo cão, porque a nossa memória colectiva já só é “preservada” nos nomes dos centros comerciais…