9/28/2006

A CHARANGA

Começo esta “crónica” com um compromisso. O de tão depressa não voltar a falar da gestão pública local, como o fiz em duas anteriores crónicas, embora considere que o assunto tem todo o cabimento num jornal de âmbito regional, como o “Triângulo”.

Defendi nestas mesmas páginas que os recursos públicos administrativos deviam ser partilhados entre as diversas instituições e que a educação devia ser um projecto debatido e assegurado pela comunidade. Julgo que falta um outro vértice para que finalmente deixe de maçar os leitores (os poucos que ainda têm paciência para a minha petulância) com estas questões.

Todo o político local que se preze entende, ou simplesmente é forçado pelas circunstâncias a entender, que deve reivindicar o maior número possível de serviços públicos (repartição de finanças, conservatórias, notários, etc.) no seu círculo eleitoral, na sua cidade, vila ou aldeia.

Sendo o objectivo legítimo, o seu conteúdo é de todo anacrónico. Isto é, o que normalmente se pede é uma repartição de finanças, uma conservatória do registo civil ou predial, uma delegação da segurança social. Isto implica a criação física e administrativa de cada um destes serviços, com os inenarráveis concursos públicos para aquisição de bens e serviços, a transferência de arquivos destes serviços para os novos que se instalam, de recursos humanos, etc., etc.

Isto é, repito, anacrónico. O discurso político vive ainda no paradigma da administração pública tipo mangas-de-alpaca. No mundo real e quotidiano, há muito que tal modelo deixou de fazer sentido. Por duas razões.

A primeira é que hoje em dia a maior parte dos actos entre as pessoas e o Estado pode ser feita utilizando recursos tecnológicos que dispensam o contacto físico.

A segunda é que eu exijo que o dinheiro dos meus impostos tenha uma aplicação racional, para que seja viável pagar cada vez menos.

Com um computador e uma ligação à Internet é possível entregar o IRS ou pedir certidões do registo predial. Quem é que no seu perfeito juízo prefere estar numa fila, a ouvir o matraquear dos sacrossantos carimbos?

Conceitos como o do Balcão Único, em que as pessoas tratam de todos os assuntos num único sítio são o caminho. O PAC (Posto de Atendimento ao Cidadão) é, embora de forma tosca, a primeira experiência nesse sentido.

Por isso entendo que o discurso político a nível local deve mudar. O que se deve estudar, planear e concertar com a Administração Central é a melhor forma de implementar esses balcões únicos locais e não reivindicar, demagogicamente, a instalação de uma repartição ou de uma conservatória. Reivindicar significa, no discurso político instalado, fazer pedidos a terceiros para desviar a atenção da nossa própria incapacidade.

Infelizmente o carrossel da politiquice tem por hábito apear ou pura e simplesmente ignorar quem quer mudar o rumo da charanga.

Até ao dia em que o responsável pelo carrossel puxe a ficha e se acabe a festa.


9/14/2006

OS RICOS QUE PAGUEM A CRISE

Quando falamos do nosso estado de desenvolvimento, costumamos colocar-nos entre os mais pobres dos mais ricos. Em tempos de crise aproximamo-nos dos mais ricos dos mais pobres e não “descemos” ao seu grupo por circunstancialismos geográficos.

Lembrei-me há dias da célebre ideia pós-25 de Abril que proclamava “os ricos que paguem a crise”, porque na nossa sociedade continuam a existir pessoas e grupos que entendem que essa frase ainda faz sentido.

Acontece que não conheço nenhuma sociedade humana na qual os ricos tivessem algum dia pago a crise. E isto acontece independentemente de eu considerar que os ricos podiam pagar a crise.

Convém antes de mais delimitar minimamente o que é um “rico”. Para mim, que ganho menos de 1000 euros por mês, rico, do ponto de vista psicológico será o tipo que por mês ganha 100 ou 200.000 euros por mês. Mas sociologicamente não é rico. Faz parte da classe média.

O verdadeiro rico é uma criatura que não aparece nas revistas cor-de-rosa, que vive num mundo à parte, em que os filhos vivem num mundo à parte. Bem pode o arrivista colocar os filhos no mesmo colégio de referência, pô-lo nas mesmas escolas de equitação, que nunca passará de uma imitação, no caso cara, mas imitação.

O problema é que confrontados com a riqueza, o que nós queremos (legitimamente) é ser um pouco mais ricos e temos como referência o vizinho e o seu bmw, o patrão e as suas férias em paraísos tropicais e mantemos com essas referências uma relação ambígua, esquizofrénica, até. Por um lado admiramos a sua esperteza em fugir aos impostos, sonhando ser como ele e por outro temos um desejo íntimo de o poder quilhar.

Enquanto os meninos se esgadanham para apanhar os melhores chupas, os ricos desfrutam calmamente souflés.

O horizonte da classe média começa num bairro de subúrbio, dai para uma urbanização no mesmo subúrbio, depois para um subúrbio um bocado melhor, para uma vivenda (agora diz-se moradia) e a cereja cristalizada em cima do bolo, uma casa de férias no Algarve.

Eis o retrato de sucesso que a maioria almeja alcançar.

Sem pessimismos existencialistas ou optimismos retirados de livros de bolso de psicologia, o mais provável é que cada vez mais existam pessoas que vão parar na urbanização do mesmo subúrbio, cada vez mais pessoas a ficarem no bairro dos pais ou na habitação social. Os ricos vão continuar ricos e etéreos. A solidariedade é uma palavra estranha no seu vocabulário. A única solidariedade exequível passa-se ao nível da classe média, o que é complicado num país estruturalmente pobre e onde cada um tenta subir um pouco mais, dando pontapés e cuspidelas no que está um pouco abaixo de si, enquanto que, com o mesmo olhar de espanto e admiração que eu punha quando via as montras das marisqueiras na Baixa há 30 anos atrás, olha o trepador alguns metros acima, procurando perceber a marca dos sapatos para ir a correr comprar um par. Perdão. Dois ou três.

8/31/2006

PARA UM VERDADEIRO PROJECTO EDUCATIVO

A Educação e em particular a Ministra respectiva têm estado na ordem do dia. Nada disto é novo, porque a educação anda há 30 anos no debate público.

Não vou, como é óbvio, tomar o partido da Ministra ou dos outros (sejam quem eles forem), até porque não há ministra e outros, a divisão é entre os que querem de facto criar uma educação de 1º mundo e os que, pelas mais diversas razões, não querem.

Como não tenho habilitações técnicas, currículo ou experiência para traçar um quadro geral da educação em Portugal e muito menos para apresentar soluções, limito-me a fazer uma reflexão relativa ao espaço onde vivo.

A Póvoa de Santa Iria, a tal cidade que muitos proclamam, tem características que a qualificam como subúrbio o que significa desenraizamento, desagregação e diferimento.

Com desenraizamento quero dizer que as pessoas não se sentem identificadas com o espaço onde vivem, não têm memórias do mesmo porque na sua maioria não cresceram aqui. Identificam-se com a sua fracção, com o seu apartamento. Desagregação significa que ao contrário de outros tempos, as actividades correntes das pessoas são feitas em diversos sítios (dormem na Póvoa, trabalham em Lisboa, divertem-se no Algarve). Diferimento significa que existe um lapso de tempo entre a instalação das pessoas e a criação de serviços de interesse público que, objectivamente diminui a qualidade de vida. Primeiro fazem-se os prédios, metem-se as pessoas, depois instalam-se as infra-estruturas dos serviços básicos e uns anos depois aparecem finalmente os serviços mais básicos (educação, Multibanco, comércio).

Não considero que a educação seja uma panaceia que tudo resolva, mas acho que pode fazer a diferença.

Desde logo respondendo às verdadeiras necessidades das famílias que vivem sob a desagregação que referi anteriormente. Não é uma escola que funciona das 9 às 5 que resolve os problemas. Como também não resolve os problemas cada uma funcionar para si mesma, de costas voltadas para a comunidade em redor.

Um verdadeiro projecto educativo passa por uma estreita colaboração entre as escolas (públicas, privadas e cooperativas), as instituições e associações.

Passa por uma escola que funcione 24 sobre 24. Que aborde matérias com os alunos que digam respeito ao meio onde vivem. Que promova as relações intergeracionais, propiciando o convívio entre os miúdos e os mais velhos. Que ponha os miúdos a fazerem qualquer coisa de útil, para eles e para a comunidade. Isto não é um problema dos professores, é um problema de todos. Deve ser discutido pelas entidades, públicas e privadas que existem na Póvoa. Não pode ser decidido numa reunião de fim de tarde, em que os presentes querem é ir para casa, tratar das suas vidinhas. É necessária uma estratégia que defina o que é que cada uma faz, que reúna meios (financeiros, humanos e logísticos). Um programa que preencha um dia inteiro de cada aluno, de acordo com as suas vocações, sem hiatos. E tudo isto deve ter como objectivo a criação de condições para que os miúdos de hoje sejam amanhã homens e mulheres mais conscientes, mais informados. Só proporcionando estas condições e gerando expectativas nos pais se pode exigir deles uma maior participação e disponibilidade e não ao contrário.

E isto não custa mais dinheiro e basicamente é uma questão de organização e competência.

Qualquer pessoa de bom senso e sem especiais conhecimentos chega a estas conclusões.

Então porque é que não se faz? Pelas mais diversas razões. Porque alguns gostam de exercer pequenos poderes. Porque outros estão tão habituados à inércia que respirando, já deixaram de pensar e porque neste país a ausência de regras e de responsabilidade têm promovido a mediocridade.

7/21/2006

UM NOVO PARADIGMA DE GESTÃO PÚBLICA LOCAL

Sem pôr em causa que as grandes e mais importantes decisões para o País são tomadas a nível central (Pelo Governo e pela Assembleia da República), não deixo de considerar que as decisões e as formas da gestão pública local são determinantes para a melhoria da qualidade de vida concreta das pessoas.

O actual modelo de gestão de serviços locais há muito que está esgotado. Já toda a gente percebeu, diariamente todos sentem isso, mas ninguém faz efectivamente nada para o alterar.

Tomando como exemplo a Póvoa de Santa Iria, que é uma das maiores freguesias urbanas do País, temos um conjunto de serviços públicos que funcionam separadamente, sem qualquer interligação entre si, para além do mínimo necessário. As Escolas, o Centro de Saúde, a Força de Segurança e a Junta de Freguesia têm, cada um, o seu quadro de pessoal, os seus meios técnicos e instrumentais, o seu orçamento e as suas competências.

Se quisermos ser sérios neste debate, chegaremos à conclusão que existe um núcleo de competências próprias de cada uma destas entidades. Ensinar no caso das Escolas, prestar cuidados de saúde no caso do Centro de Saúde, zelar pela segurança no caso da GNR e representar politicamente a freguesia, no caso da Junta de Freguesia. Para desempenharem estas competências, precisam, respectivamente de Professores, de Médicos e Enfermeiros, de Soldados e de Políticos. Todas as outras funções (burocráticas, administrativas, de higiene e limpeza dos seus próprios espaços e equipamentos, etc.) são instrumentais e idênticas (com pequenas diferenças) nas quatro instituições. Não tem pois qualquer justificação em termos de gestão que cada uma destas instituições tenha o seu próprio quadro de pessoal, gastando cada uma parte dos seus recursos na gestão deste “aparelho”. Para quem está de fora, mas que paga impostos e quer ver esse dinheiro bem empregue, é absurdo que por exemplo faltem auxiliares de acção educativa numa escola quando noutra instituição pública do mesmo espaço geográfico podem existir recursos humanos afectos à função pública e capazes de prestar esse serviço e que só não o fazem porque o facto de estarem vinculados ao organismo x é mais relevante que o seu vínculo ao serviço público. Assim o dizem as leis do funcionalismo público, assim defendem os sindicatos e assim continuamos a gastar alegremente os dinheiros públicos. Manter a higiene e efectuar a limpeza é basicamente igual no posto da GNR, na Escola, no Centro de Saúde ou na Junta, como é o trabalho administrativo e auxiliar.

É necessário um novo paradigma de gestão pública local que passa essencialmente por identificar o núcleo central das competências de cada órgão, afectar em exclusivo os recursos indispensáveis ao exercício dessas competências e por partilhar os recursos humanos, técnicos e financeiros que instrumentalmente todos precisam.



7/10/2006

CANTIGAS DO RUAS

Depois de um período de ausência, por causa dos exames, estou de volta.

E para começar, gostaria de fazer um breve comentário à entrevista do Dr. Fernando Ruas, Presidente da Câmara Municipal de Viseu há 16 anos e Presidente da Associação Nacional de Municípios.

Desde logo, a falta de preparação dos dois entrevistadores (sobretudo da jornalista da Rádio Renascença) chegou ao ridículo.

De tudo o que o Dr. Fernando Ruas disse (referiu alguns factos e lugares comuns) gostaria de destacar a visão oitocentista (para ser simpático com o homem) que revelou ter relativamente ao território.

Acha o Dr. Fernando Ruas que em nome da “coesão nacional” a Administração Central não pode alterar a fórmula de cálculo das verbas que cabem a cada município e assim canalizar mais verbas para os grandes municípios urbanos.

O que não disse foi que a maioria das pessoas vive nos grandes municípios e que na prática a coesão que defende significa que a maioria tem menos qualidade de vida para que a minoria disponha de pavilhões onde ninguém joga, escolas onde ninguém aprende, magníficas estradas municipais sem uma marca de travagem brusca.

O que não deixa de ser curioso, num social-democrata.

No país do Dr. Ruas, continuaremos a ter subúrbios pejados de gente sem escolas para os filhos, de caos rodoviário, de piscinas atulhadas de putos, de autarcas cedendo à especulação pura e dura. Enquanto que em cidades como Viseu, ou Covilhã, ou Vila Real uma minoria continua a viver com mais qualidade de vida, como o demonstram as estatísticas.

E pelo que se viu, é com base nesse mapa administrativo do século XIX que vamos continuar a viver.

4/17/2006

VOU VOLTAR PARA A MINHA TERRA

Parafraseando a minha mãe, no fundo sou um rústico, um inadaptado à vida urbana. Ora, a “coisa” só pode ser atávica, porque nunca morei em sítio diferente do que moro hoje e se é certo que nem sempre foi um subúrbio, não tenho qualquer memória de uma Póvoa rural. Nem sequer usufrui das idas de Verão “à terra”, como muitos dos putos da minha geração. As minhas idas ao campo foram sempre a aldeias emprestadas, com primos e primas emprestados a quem me limitava a simular um sorriso de circunstância.

Não posso no entanto deixar de dar razão à minha mãe, porque de facto tenho uma certa fobia de multidões, de apertos, de barulho. Gosto de conhecer os vizinhos, de morar a 100 metros do meu emprego.

Trocava de bom grado um t7 por uma quintarola com terreno para me espojar à vontade, pelo que concluo que sou mesmo rústico. Atavicamente rústico.

Vem toda esta converseta a propósito do abandono do mundo rural.

As pessoas hoje fogem do interior e do campo, seja para os contínuos urbanos do litoral ou para as cidades ditas médias.

Os putos da minha geração ainda têm, na sua maioria, pais que vieram dos sítios mais recônditos. Os meus filhos têm pais que são filhos do subúrbio.

A questão de fundo é esta: numa sociedade onde existe liberdade de circulação e de estabelecimento, como é que o Estado pode obrigar as pessoas a ficarem num determinado sítio? Não pode.

Tenho a convicção que as pessoas vão voltar ao campo, mas por reacção, isto é, quando mais uma vez a cidade não lhes garantir o mínimo. Ao longo da história estas migrações têm sido cíclicas, campo-cidade, cidade-campo.

Por isso entendo que esforços como a manutenção de serviços públicos (escolas, tribunais, fisco, centros de saúde) não servem de nada e acabam por piorar a condição de vida da maioria das pessoas (que vivem na cidade), porque os recursos são aplicados de forma desproporcionada. Como já afirmei, ninguém vai morar para o mundo rural só porque lá existe um centro de saúde, uma escola ou um tribunal. As pessoas precisam de fontes de rendimento e a solução não passa por novos investimentos, leia-se fábricas, porque a partir do momento em que se instale uma fábrica em Carrapatosa de Cima, nascerá, mais cedo ou mais tarde, uma cidade. O campo só se mantém com actividades rurais, com a agricultura, com a pecuária e afins. É por isso que se chama campo. Se se mantivesse com a indústria chamava-se subúrbio. Tinha prédios para albergar os trabalhadores.

Ora isso levanta outro problema. Como hoje podemos comprar alfaces da Tailândia e beldroegas do Chile, e na Tailândia e no Chile produzem muito mais barato, a nossa agricultura não consegue competir.

Mais uma vez não depende do Estado nem da PAC a sobrevivência, mas do simples facto das pessoas perceberem que quando estão a comer tomates alentejanos ou cerejas transmontanas estão não só a alimentarem-se como a ajudar a que se mantenha o mundo rural, mesmo que isso lhes saia mais caro. Porque caro vai sair sempre. A partir do momento em que a fuga para os subúrbios for total, vão começar a pagar mais impostos, fazer estradas, implementar serviços públicos, vai ser inimaginavelmente mais caro, porque na malha urbana compactada em que cada vez mais vivemos, arranjar espaço para uma estrada vai ser um desafio para a engenharia e um sorvedouro de dinheiro constante.

Nenhum Estado (nem mesmo ditatorial) consegue mudar, por si só, as mentalidades e os hábitos das pessoas. Por isso, a questão resume-se no essencial à opção de vida e de sociedade que queremos. Isto significa mudar a estrutura da nossa despesa familiar, sermos mais racionais no consumo de bens que são escassos, o que contradiz a vontade de uma sociedade que só agora começa a chegar aos prazeres consumistas da classe média e de uma certa, mas pouco sustentada, abastança.

3/29/2006

BOA FÉ E RECIPROCIDADE

A expulsão dos imigrantes do Canadá pode ser vista de duas formas. A primeira é a que diz “Dura Lex, sed Lex” e que assim fecha a questão. A outra é que a aplicação de qualquer Lei pressupõe boa fé de quem a aplica e dificilmente pode o Estado Canadiano alegar que desconhecia que há mais de 10 ou 15 anos muitas daquelas pessoas lá viviam. A vida das pessoas, por menos intrusiva que possa ser a actuação de um Estado, é feita de actos que pela sua natureza são públicos (compra ou arrendamento de casa, inscrição dos filhos na escola) e de outros que além de públicos pressupõem o conhecimento expresso do Estado (pagamento de impostos), pelo que existe má fé do Estado Canadiano nesta actuação.

Para além do princípio da boa fé existe um outro que nunca deve ser esquecido nestas ocasiões, que é o da reciprocidade.

Para que amanhã o Estado Português não faça exactamente o mesmo com imigrantes que vivem, trabalham e descontam há 5, 10 ou 15 anos no nosso País.

3/03/2006

MORCEGOS DE FRAQUE

Na curiosa fauna indígena, há um bicho muito especial, protegido como poucos. Pilhas e pilhas de decretos, de despachos, impedem a sua extinção. Num clima social onde algumas vozes reclamam a biodiversidade, eis um exemplo de resistência e protecção.

Estou, como é óbvio, a falar do Morcego de Fraque.

Criatura ancestral, descrita desde há muito na literatura especializada, mantém-se praticamente inalterada desde o início dos tempos, embora a sua adaptabilidade possa indiciar o contrário. Numa ou noutra ocasião podem crescer-lhe poderosas garras ou afiados caninos, mas no essencial continua a ser a mesma: invertebrada, primária, comezinha até.

Refugia-se nos pontos menos iluminados dos amplos corredores que se projectam para afirmar a nossa grandiosidade civilizacional, de onde só sai para, no silêncio das suas patas ridiculamente pequenas, morder os calcanhares de quem passa.

Morder manso, quase doce, tem o bicho!

Suga, suga, enquanto beija e à medida que vai trepando nas pernas do hospedeiro, chama os amigos para tal comezaina. Ou então, se ainda é mancebo, novo e inexperiente, trepa sozinho até chegar a sítio mais quente.

Bem se coça o hospedeiro, com a cútis irritada; assim se move o bandoleiro, numa dança bem encenada.

Não sendo criatura de devaneios, se ali já não dá nada, levanta os freios e parte de madrugada.

E que faz a criatura, quando do alheio não se alimenta?
Coisa sem estrutura, muito menos de sebenta.
Arranja fêmea ou macho, em festas catitas
Logo constitui família e em casa recebe visitas.

Perguntará o leitor, deveras intrigado
Onde se avista tal bicho,
Onde come, onde fica o seu nicho
Que nunca viu em nenhum lado?

Nasce todo pretinho, berrando pelo corredor
Mal se aplaca a borbulha, é nomeado doutor
É aí que se dá, fenómeno sem igual
O trafulha passa a excelso intelectual

Pula de escritório em escritório,
Que as fartas formas da República a todos acolhe,
O almoxarife emproado que chega ao parlatório
Ou o incompetente que mais ninguém escolhe

2/16/2006

PROFILAXIA URBANA

Quase como nós próprios, os espaços urbanos têm o seu tempo de pujança e esplendor e tornam-se decadentes e ineptos.

Sem quaisquer pretensões doutrinárias, julgo que, com as suas óbvias diferenças, a Urbanização da Portela e o Bairro dos Olivais são duas realidades que servem de referência para quem gosta de pensar sobre o urbanismo.

Ambas surgiram com a melhor das intenções, foram marcos em termos de intervenção urbana e caíram em decadência. Claro que falar em decadência na Portela ou no 6 de Maio se reporta a realidades qualitativamente diferentes. O projecto, pensado e executado para uma determinada ideia de comunidade não se revelou adequado (nem nenhum projecto urbanístico, por muito bom que seja, consegue, por si só, evitar fenómenos de exclusão ou de delinquência, ou sequer “criar” o espírito comunitário) nem resistiu incólume às mudanças sociais que se verificaram.

Aquelas duas áreas (sub)urbanas tornaram-se inadequadas, deixaram de dar resposta às necessidades dos seus habitantes, numa palavra, tornaram-se anacrónicas.

E é exactamente essa palavra que me surge quando penso na chamada 2ª Fase da Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria. Anacrónico.

As realidades que falei no início, nasceram adequadas às necessidades de então e só depois, com a alteração dos hábitos das pessoas e o surgimento de outras áreas, se tornaram inaptas. A 2ª fase já nasceu completamente desfasada, inadequada ao seu tempo. Não falo obviamente no interior das habitações, no espaço privado, que terá com certeza, o último grito (histérico) da moda. Falo no espaço público, refiro-me ao próprio modelo, à quase ausência de comércio, à disposição dos prédios, olhando desconfiados e de soslaio uns para os outros, da mesma forma que nos olhamos nos elevadores.

Para quem não conheça, não estou a falar de meia dúzia de lotes, mas de uma área com mais população que a maioria das freguesias do Concelho de Vila Franca de Xira.

Não pretende este texto ser um libelo contra quem autorizou tão bizarra esfinge, sem nenhuma causa existencial para além da incúria de uns e a inconsciência de outros.

Pretende antes de mais funcionar como um alerta, para que, criado o monstro se evite que tenha azia.

Quem vai hoje morar para a 2ª Fase, depressa procurará outra zona, porque rapidamente vê goradas as suas expectativas mais básicas. Ou seja, assim torna-se impossível criar qualquer consciência cívica eficaz, porque as pessoas olham para a urbanização como um ponto de passagem e nunca (ou pelo menos raramente) como um sítio para se fixarem, para criarem raízes.

Tudo isto leva à depreciação do valor das habitações e perante o dinamismo que caracteriza a área metropolitana de Lisboa e os novos pólos de atracção (como o aeroporto da Ota) não é difícil imaginar a debandada das pessoas que moram na 2ª Fase, assim como a transmissão dos imóveis entretanto desvalorizados a quem os quiser comprar, passando aquela área a ser habitada não pela garrida classe média, como hoje, mas essencialmente pelas franjas mais desfavorecidas. Como é óbvio, nada tenho contra quem é menos desfavorecido, quem vive em condições de cidadania precárias, mas concentrar quem é mais desfavorecido repele, é contra a natureza do conceito de cidade, forma ghettos, empobrece a vida citadina. Da mesma forma que os ghettos dos ricos, aliás, mas com efeitos sociais mais perversos. Teremos no meio da Póvoa um bairro onde quem não mora lá não passa, ou se passar é porque lá se “passa”. Ora eu não quero uma versão contemporânea do Bairro dos Olivais nos anos 70.

E para que isso não aconteça, é preciso que se actue de imediato. Os poderes públicos, é certo, mas também as próprias pessoas, em relação às quais os poderes públicos devem dar a iniciativa, facilitá-la até, com regras mas sobretudo com bom senso.

Tenho a noção que os recursos públicos são não só limitados como escassos, isto é, não só se esgotam, como não respondem às necessidades actuais. Também por isso, a atitude das pessoas é fundamental e fará toda a diferença, porque não há polidesportivos, parques urbanos, zonas de lazer, aquilo que lhe quiserem chamar, que criem, por si sós, o espírito comunitário e a vontade necessária para que a 2ª fase não se torne num ghetto.

Dir-me-ão que estou a ser alarmista, exagerado, pedante, que a 2ª Fase é só uma zona da Póvoa de Santa Iria, que não é verosímil que se torne, em 10 ou 20 anos, numa zona degradada.

A “zona” é, repito, maior (em termos populacionais) que a maioria das freguesias do concelho. O espaço urbano não pode ser visto como um aglomerado de feudos, mais ou menos fechados. Com áreas públicas degradadas, sem dignidade, insalubres, nas quais as pessoas são incapazes de respirar num ar fétido de tanto regulamento em papel amarelado, de tanto procedimento administrativo inconsequente, de tanta conversa da treta e joguinhos pueris do “agora fazes tu, ou agora faço eu?”, e que por isso se fecham em casas de chão parquet. Até ao dia em que paulatinamente, começarem a sair dos prédios com as malas vuitton de feira e se meterão nos seus automóveis, para nunca mais voltarem. Sem um pingo de pena ou de saudade.



2/01/2006

ACUPUNPTURA MASOQUISTA

Numa tentativa mais ou menos frustrada e pedante de fugir ao circuito dos Centros Comerciais, tive a oportunidade de me deparar com o exercício de auto-medicação, sob a forma de acupunctura masoquista, que de uma maneira menos prosaica se chama gestão do património público.

O Estado, por boas e más razões, tem um património (no caso concreto um património edificado) valioso, que pela incúria de uns (zelosos funcionários) e pelo desinteresse de outros (todos nós), se vai dissipando, com um ritmo e uma metodologia admiráveis. De facto, se fossemos tão rigorosos e metódicos na acção, como somos na omissão, a nossa designação oficial não seria República Portuguesa, mas provavelmente Kongeriket Norge.

A Indep, em Moscavide e o antigo Quartel de Inspecção Militar em Setúbal são dois exemplos que não se amenizam por explicações burocráticas. Jazem, caquécticos, esfarrapados, esvaindo-se em silêncio.

O Estado, na sua ânsia prestativa, foi-se ramificando em organismos, serviços, institutos e tudo o que coube na imaginação delirante de sucessivos e impunes incompetentes. E ao abrigo do instituto da autonomia administrativa e financeira, cada um trata do património afectado como se de verdadeira propriedade se tratasse. Fazem-se guerrilhas cada vez que é necessário passar um qualquer edifício de uma direcção-geral para outra. Baterias de juristas engalfinham-se com pareceres rendados com notas de rodapé em alemão. Não há um único organismo público que seja proprietário de bens públicos, porque simplesmente os bens públicos não são susceptíveis de apropriação. Os bens são instrumentais, funcionais, afectados a um concreto organismo com um determinado fim.

Curiosamente o zelo e sobretudo o apego, esfumam-se ao abrigo de uma qualquer norma de excepção, que de boa fé, presume-se, o legislador entendeu criar, e o património público é alienado ao desbarato, permitindo a alguém fazer uma mais valia indecorosa (nada tenho contra as mais valias, mas a minha tolerância à esperteza saloia tem como limite os fura filas de hipermercado). Segundo a tabela oficiosa, dez mais valias dão direito a uma comenda.

Uma viagem virtual à Direcção Geral do Património é esclarecedora. Como objectivamente não há planeamento nem estratégia, ou pelo menos mudam cada vez que muda o Governo, muitas das vendas em hasta pública ficam desertas, isto é, não aparece ninguém para comprar o que o Estado quer vender.

Como os tais organismos não falam entre si, dão-se situações ridículas, em que, por exemplo, um determinado serviço precisa de um edifício com carácter de urgência, num local concreto e acaba por fazer uma aquisição quando, mesmo ali ao lado existe um edifício público, mas que levaria muito tempo a desafectar, que pertence ao instituto Y, ou simplesmente porque os dirigentes dos dois serviços não gostam, desde o tempo da faculdade, um do outro. Há sempre uma lei, uma portaria ou um despacho protector da gestão danosa, mesmo que sejam do tempo do amigo botas.

Decididamente, o melhor é deixar-me de passeios ao ar livre e ir para o vasco da gama, o colombo ou o diogo cão, porque a nossa memória colectiva já só é “preservada” nos nomes dos centros comerciais…