12/27/2004

Finalmente! Detrás do Reposteiro - The Movie! Digo The Book. The Paperback...


UM APELO CONTRA A INÉRCIA DO SOFÁ

Quando eu nasci, há cerca de trinta nos, a Póvoa de Santa Iria pouco tinha a ver com esta cidade em que hoje está transformada. Ao longo destas três décadas vi-a passar de uma pacata localidade de vocação industrial a uma das mais populosas cidades do país.

Criado nesta transformação urbanística, queria saber quais as expectativas e as reais necessidades da nova comunidade. É nesse sentido que ao longo dos últimos anos tenho vindo a compilar e a analisar os dados disponibilizados quer pelo Recenseamento Eleitoral, quer pelo Instituto Nacional de Estatística. As conclusões da observação dos dados de 2001, que apresento em seguida, vêm reforçar as impressões que eu, assim como, julgo, qualquer um dos meus conterrâneos pode retirar da sua experiência diária. Vemos então pela análise dos dois estudos já referidos que:

- a freguesia da Póvoa de Santa Iria está entre as que mais cresceram no panorama nacional, apesar da diminuição dos fluxos migratórios registada durante o ano 2001;
- a grande maioria dos novos munícipes é bastante jovem, escolhendo a freguesia para formar novos agregados familiares;
- apesar deste dinamismo, a taxa de recenseamento continua a ser bastante baixa;
- a Póvoa de Santa Iria está a tornar-se num novo foco centralizador, na zona leste da Área Metropolitana de Lisboa;
- as freguesias vizinhas são as principais fornecedoras de novos habitantes;
- uma parte importante das saídas dá-se no sentido centrífugo de Lisboa;
- para além de muitas entradas e de algumas saídas, os fluxos internos são bastante significativos, notando-se uma migração para as urbanizações mais recentes;
- o saldo entre entradas e saídas é duplamente positivo: são em maior número as entradas e o escalão etário das saídas é mais elevado, rejuvenescendo a população;
- dentro da freguesia existem diversas realidades, bastante diferenciadas, não só a nível da tipologia das habitações como das pirâmides etárias;

Reforçados pelos números, estas impressões apresentam-se como uma ferramenta importante no estabelecimento de directrizes e estratégias que voltem a fazer da Póvoa de Santa Iria uma comunidade, na verdadeira acepção da palavra, isto é, um determinado espaço físico e cultural onde seja possível construir uma identidade, onde seja possível partilhar e viver e não apenas onde está o apartamento onde se dorme e se toma o pequeno-almoço.

Parece-me também que mais do que eventual arma de arremesso contra os poderes instituídos ou aconchego retórico para os que fazem da demagogia um modus vivendi, estes dados servem antes de mais como alerta para o carácter imperativo de um movimento que desperte as pessoas. Este apelo não se dirige apenas aos órgãos autárquicos que directamente influenciam a cidade. Dirige-se sobretudo aos cidadãos que vivem na Póvoa de Santa Iria e aos que com ela têm alguma ligação. É um apelo contra a inércia do sofá, contra a ideia que a democracia e a cidadania são somente mais um produto que mediante o pagamento de uma taxa se recebe em casa.

É nesta perspectiva que me regozijo particularmente com o surgimento do Triângulo, porque me parece ser um espaço privilegiado para o debate de ideias, para o florescimento de iniciativas socialmente úteis. Fica pois o desafio contra a inércia, eu, por mim, não faço tenções de ficar no sofá.



Publicado no Triângulo n.º 1, de 3 de Setembro de 2002




































CUIDADO COM O DONO


Caros Leitores:

Nada há de mais gratificante, para um candidato a cronista como eu, que receber ecos daqueles que me lêem.

Recebeu a redacção do jornal "Triângulo" uma carta de um leitor que me é endereçada e que passo a transcrever.

Caro Sr. Nuno Augusto:

O meu nome é Bobi. Quero dizer, o meu verdadeiro nome é Paulo Jorge. Paulo Jorge Albuquerque Reis. Albuquerque por parte da mãe e Reis por parte do presumível pai, mas o meu dono insiste em chamar-me Bobi. O que não é mau, se compararmos com Dick ou Pussy, nomes com os quais certos donos homenageiam os seus canídeos. Na verdade eu também não lhe chamo José Luís. Baptizei-o de Caricas, pois faz questão de brindar os amigos com o seu número de circo, em que abre tampas de garrafas de cerveja com a força das suas mandíbulas, nas tardes em que estes invadem o meu sofá, para ver o futebol.
Acontece que há várias luas (as vossas semanas, mais coisa, menos coisa) que o Caricas me deixou à porta de um quiosque para ir comprar o "Record" e um maço de "Marlboro Lights" e nunca mais o vi.
Fiquei abandonado no meio destes enormes prédios, mas rapidamente encontrei várias dezenas de canitos como eu, à espera de donos que foram ao quiosque e de donas que estão no cabeleireiro há várias luas. Decidimos formar uma associação, a Associação de Cães Abandonados Ostensivamente e como não temos sede social, reunimo-nos na rua, como aliás V. Ex.a poderá facilmente constatar, deslocando-se à Quinta da Piedade ou ao Casal da Serra.
Há duas luas pareceu-me ver o Caricas ao volante do Maquinão (Maquinão é o nome que ele dá ao automóvel), mas certamente não era ele. Na parte detrás do carro, junto ao vidro, estava um daqueles cães falsos, que balançam ao sabor das curvas e contra-curvas. Não acredito que Caricas me fosse trocar por aquela coisa de plástico! Afinal, quem, tendo a Marisa Cruz, poderia preferir uma boneca insuflável?.
A minha vida tem sido difícil, Sr. Nuno. Felizmente conto com a boa vontade e o afecto de milhares de povoenses que me alimentam quando, acabado o seu lanche, lançam os restos pelas janelas das cozinhas, ou quando, num engraçado jogo, atiram os sacos do lixo, pela calada da noite, e invariavelmente estes rebentam, mais perto ou mais longe do suposto alvo (os caixotes do lixo). Nessas alturas a ACAO organiza verdadeiros banquetes!
Só ficamos um bocadinho chateados porque com esta moda dos produtos "light" e das linhas zero, a comida é quase intragável, mas enfim, o mundo não é perfeito e estamos muito orgulhosos de sermos parte activa na manutenção do ecossistema e da cadeia alimentar que começa nos hipermercados, continua nos humanos, passa por nós e acaba nos milhares de roedores que se banqueteiam com os restos dos nossos restos.
Mas tenho saudades do Caricas, Sr. Nuno. Daquelas noites em que, durante a telenovela, me trazia à rua e solidário comigo, urinava, invariavelmente nos pneus do jipe do nosso vizinho do lado, um gajo detestável, com um carro melhor que o do Caricas, com uma mulher melhor que a do Caricas, com um filho que joga melhor à bola que o filho do Caricas e com um temível pastor alemão que me perseguia escadas abaixo. Era a nossa doce vingança...
Sr. Nuno, se por caso vir o Caricas, diga-lhe que tenho muitas saudades dele e que apesar dos berros da sua mulher sempre que eu me deitava no sofá, ela no fundo gosta de mim. E não cresci assim tanto, nem ladro muito. E estou disposto a aprender a utilizar o cartão de Multibanco, se precisarem ir de férias e não me puderem levar.

Um uivo sentido

Saudações caninas,


Paulo Jorge Albuquerque Reis





Publicado no Triângulo n.º 2, de 17 de Setembro de 2002































MEMÓRIA DE ELEFANTE


Caros leitores,

Vem hoje à liça uma das minhas (recentes) actividades, que se prende com a investigação sobre História. Nessa pesquisa, que me tem levado de biblioteca em biblioteca, de instituto em instituto, descobri uma pequena história que não resisto a transcrever nas páginas do "Triângulo":

Era uma vez, há muitos, muitos anos, um belo reino situado na encosta de uma pequena montanha, espraiando-se na margem norte do estuário de um belo rio. Em certa ocasião, chegou a esse reino um mancebo, pequeno no tamanho, mas grande na altivez e decidido nas atitudes, honrando a tradição daquelas terras, onde os jovens varões desafiavam, de mãos nuas e peito aberto, as bestas que dominavam os imensos pastos. Num ápice o jovem tomou o poder e logo concedeu forais, procurando assim povoar o reino.
Apoiado pelos seus apaniguados, que se reviam na sua força interior, o jovem príncipe foi fortalecendo o seu poder e continuou a distribuir benesses, transformando grande parte do seu reino outrora bucólico num imenso emaranhado de altos e monolíticos castelos de betão, onde acorriam milhares de estrangeiros, fascinados pela possibilidade de trocarem as suas modestas casas por um lugar num castelo.
Homem de cultura, o outrora jovem mancebo promoveu concursos de gastronomia, onde com aparente satisfação, os seus apoiantes deglutiam aquela que se tornou a iguaria do reino: o sapo vivo. Num pequeno mas populoso condado do sul do reino começaram a surgir vozes em discordância com a política de construção de castelos atrás de castelos, à frente, dos lados, por cima, por baixo. Não se intimidou o monarca com tal aleivosia e ordenou que mais castelos fossem erigidos.
Ripostaram os homens-bons desse condado que se estava a tornar impossível estacionar as milhares de carruagens que convergiam para aqueles lados, que os mestres não possuíam academias para ensinarem os jovens alunos nas artes e nos ofícios e que a décima daquele lugar não era aplicada em benfeitorias necessárias àquela população.
Despeitado, o monarca respondeu com o desprezo por aquela parte do reino. Por esta altura, alguns dos comensais, incapazes de deglutirem os batráquios cada vez mais volumosos, abandonaram a mesa, descobrindo-se então que se alguns comiam sapos, outros comiam iguarias bem mais aprazíveis, num cenário orwelliano. Começando nesse pequeno condado do sul, a revolta foi lentamente crescendo, alastrando-se entre sussurros e abraços cúmplices, até ao dia em que no decorrer de um torneio que se realizava tradicionalmente de quatro em quatro anos naquele reino, o outrora jovem e garboso mancebo foi derrotado por uma donzela de voz suave mas firme de intentos, que numa estocada, o derrubou do cavalo, com um golpe certeiro, deixando-o prostrado no terreiro, perante o espanto de muitos, o júbilo de outros e o secreto contentamento de alguns. Chegara ao fim o seu reinado.

Diga-se, em abono da verdade, que a história não acaba aqui. Voltarei, oportunamente, aos capítulos seguintes.



Publicado no Triângulo n.º 4, de 15 de Outubro de 2002
O SÍNDROMA DA NOVA ZELÂNDIA

Reflecti bastante antes de me decidir pelo título desta crónica. Não quero criar qualquer clima de pânico entre os meus concidadãos. Este síndroma nada tem a ver com esse fumador inveterado que noite e dia expele baforadas do lado de baixo da linha do caminho de ferro. Advirto no entanto que este síndroma é contagioso. Segundo estudos publicados recentemente por reputadas revistas de cariz científico é provável que este contágio se dê por mimetismo, por uma reacção psicossomática.

Pela manhã, os pacientes dirigem-se freneticamente ao transporte que os leva ao seu local de trabalho, invariavelmente de cabeça baixa e ritmo sincopado, percorrendo sempre as mesmas artérias, de forma automática, sem qualquer recurso aos sentidos. Aparentemente não falam, não ouvem, não cheiram, não degustam nem sentem.

Voltam à noite, ainda mais prostrados e insensíveis, procurando compulsivamente os seus casulos de onde só saem para a recolha de víveres, numa corrida envergonhada ao posto de abastecimento mais próximo, e graças às maravilhas da tecnologia moderna, só necessitam de olhar de soslaio o mostrador que em tons de verde huxley anuncia ?3,87?, obrigado? e esticar o cartão de consumo. Voltam apressados aos seus casulos, quais coelhinhos da Alice no País das Maravilhas. No estádio mais avançado é possível nem sair dos casulos e encomendar os víveres pelo telefone ?Se pretende uma pizza simples, carregue no 1; se pretende uma pizza com queijo e chouriço, carregue no 2; se pretende uma pizza paquistanesa, carregue no 3?. Quase de imediato, um rabanete zumbidor e motorizado faz a entrega. Metidos nos seus casulos, os pacientes enroscam-se confortavelmente em frente ao seu televisor. Talvez por isso e em situações de crises agudas da doença ficam confundidos quando abrem as janelas e por momentos não sabem se o que vêem é um filme ou a realidade, similar aos momentos em que acordamos no meio de um sonho. Por profilaxia muitos deixaram pura e simplesmente de abrir as janelas.

Apesar da gravidade, alguns investigadores admitem a possibilidade de cura. Acham que o autismo é apenas aparente. Que no fundo, bem no fundo, os pacientes falam, ouvem, cheiram, degustam e sentem.

Também tenho essa convicção ou se quiserem e dado que não sou cientista nem investigador, essa fé.



Publicado no Triângulo n.º 5, de 29 de Outubro de 2002










O BISNAU

Tenho a certeza que mesmo os meus leitores menos atentos já ouviram falar daquele género de criaturas que, nunca se conhecendo verdadeiramente a sua natureza, nem existindo provas cientificamente irrefutáveis da sua existência, se suspeita serem tão reais como nós. Enquadram-se nessa categoria o Abominável Homem das Neves e o Monstro do Loch Ness.
Pois bem, sei, de fonte segura, que as autoridades locais suspeitam da existência de um tal ser aqui, na nossa cidade. Embora de forma cautelosa e sem nunca o admitirem, peritos andam já no terreno, procurando pistas que levem à identificação de tal alimária.
Esta task-force baptizou, provisoriamente, o animal de Bisnau e já identificou o seu modus operandi: pela calada da noite, esgueira-se por entre os automóveis estacionados e presume-se que trepe prédios. E digo presume-se porque nunca ninguém viu tal acção, mas diversos relatos apontam para a identificação do Bisnau refugiado por detrás das janelas que os incautos deixaram abertos, perpetrando o acto que levou à suspeita da sua existência: o lançamento de sacos de lixo e de objectos na via pública. Está assim explicado, pelo menos em parte, o quadro matinal com que somos brindados, feitos de sacos de lixo obesos e outras coisas que a linguagem vernácula tão bem caracteriza, esparramados nos jardins fronteiros aos prédios, quais turistas suecos aguardando imóveis as escassas horas de Sol num qualquer relvado de Gotemburgo.
Os testemunhos afirmam que o estranho ser é antropomórfico e provavelmente humanóide, sendo possível vislumbrar os seus membros superiores que num movimento rápido, lançam, por vezes a distâncias consideráveis, caroços de frutas, embalagens de iogurte, pacotes de leite, enfim um sem número de objectos que nós, humanos, arrumamos sumariamente no lixo. Alguns Bisnaus parecem dispor de um dispositivo natural que emite uma intermitente luz vermelha, mais ou menos no sítio onde nós temos a boca. Os investigadores aventam a hipótese de se tratar de um rudimentar sistema de comunicação, pois por vezes lançam essas pequenas luzes em conjunto com os detritos. Chegou-se entretanto a um impasse: ou o animal é rápido ou reproduz-se muito facilmente. Como as quantidades de lixo deixadas no meio da rua continuam a aumentar, alguns cientistas defendem que se trata de um só animal, que à medida que se vai adaptando ao meio ambiente, vai ficando cada vez mais rápido, entrando em cada vez mais janelas abertas. Um outro grupo justifica tal aumento com o crescente número de bisnaus. Matéria que suscita o maior consenso é a da necessidade de cautelosamente se alertar a população para a existência destas criaturas noctívagas.
Brevemente será tornado público um comunicado onde se solicita à população que feche bem as janelas no período nocturno e que não deixe o seu lixo indevidamente acondicionado.
Como em tudo na vida, também entre os reputados cientistas existe um grupo, minoritário, claro, de cépticos que refuta a existência do Bisnau. Segundo a sua perspectiva, incongruente aliás, os sacos de lixo e outros detritos, são lançados nas ruas e nas zonas verdes pelos próprios moradores, ao abrigo da noite. Esta teoria não tem qualquer fundamentação e esfuma-se no postulado da racionalidade humana. Parece-me claro que este tipo de acção é característica de seres irracionais, de bestas, não sendo possível, portanto, numa sociedade humana.
Estou certo que mais cedo ou mais tarde as autoridades vão capturar um Bisnau vivo ou morto e acabar de vez com a sua acção malévola.


Publicado no Triângulo n.º 6, de 12 de Novembro de 2002

FESTIM DE CANIBAIS


Meus caros leitores


Estou irreversivelmente fora de moda. Enquanto que a maioria de vós se interessa por ciências e actuais, como a informática, eu, espírito empedernido, tenho-me dedicado a assuntos impregnados de bolor e teias de aranha. Mergulho ávido na investigação arqueológica e como não tenho recursos financeiros para me deslocar à Polinésia, faço do meu quintal um pequeno laboratório. Tenho escavado metodicamente, qual condenado que aproveita todos os momentos para abrir o túnel que o conduzirá à liberdade e aguardo ansioso o primeiro vestígio de antigas civilizações, como o prisioneiro aguarda o cheiro do esgoto que o levará à liberdade.
Está pois o meu quintal transformado numa rede de túneis e buracos, o que tem agradado de sobremaneira aos cães da vizinhança, que voluntariamente me vêm ajudar na empresa, transformando-o numa espécie de Colombo da bicharada. Os meus vizinhos, mesmo desconfiando da minha excentricidade, estão-me agradecidos, pois podem ocupar o seu tempo com coisas mais importantes que passear os seus cães. E eu fico contente e num exercício que roça a esquizofrenia, imagino que aqueles caniches e perdigueiros são jovens e barbudos investigadores que fazem parte da minha imaginária equipa.
À força de tanto escavar e esgravatar, descobri vestígios de uma civilização que faz de Viriato um primo que faleceu ontem. Determinei chamar-se essa civilização Asnónia. e curiosamente apurei também que ocupava o extremo da Península Ibérica.
Eram os asnónios um povo peculiar. Indolentes e acabrunhados, tinham, com o decorrer dos tempos esquecido as artes de amanhar os campos. Como em qualquer sociedade, um grupo restrito de asnónios detinha o poder de executar as deliberações de toda a comunidade, mas a indolência de todos levou a que passassem não só a executar, como a deliberar. A cada vez maior escassez de recursos levou à instituição do canibalismo como a única solução para a sobrevivência da espécie, legitimando esta escolha com o argumento da eugenia da raça, já que os menos aptos, os mais obesos e trôpegos seriam os primeiros a serem devorados.
E assim sucedeu. Organizaram-se caçadas com pompa e circunstância, onde os mais rápidos trucidavam os mais lentos, para entregaram a sua carne aos mais sábios que assistiam, quase cândidos, do alto de promontórios. À medida que a caça se intensificava, novas técnicas foram desenvolvidas, permitindo a morte das presas com o mínimo dano para a sua suculenta carne. Chegou o momento em que pela ausência de presas os caçadores se caçaram a eles mesmos.
Apenas restavam os sábios. E aplicando o mesmo princípio, os mais aptos foram ludibriando os menos aptos, sobrando finalmente apenas um, espécie de iluminado, de criatura reunindo todos os requisitos da perfeição. Tinha apenas um defeito. Estava vivo e consequentemente precisava de se alimentar. Posto perante este dilema decidiu Eugénio (era esse o seu nome) comer-se a si mesmo, empregando toda a sua sabedoria na realização desse objectivo. Preparou cuidadosamente unguentos que lhe permitissem sarar as feridas decorrentes da auto-mutilação. Começou então por comer os dedos dos seus próprios pés, os seus olhos, pois nada no mundo ao seu redor lhe interessava ver e o tacto bastava para se consumir. Comeu as suas pernas, pois não precisava de se deslocar neste estado de auto-suficiência e assim foi avançando, até ser apenas uma língua, um esófago e um estômago em cima de uma cama feita com os seus ossos e morreu no momento em que engoliu o seu próprio coração. Assim terminou a civilização dos asnónios.
Confesso que estas descobertas me deixaram meio angustiado e apenas a inocente certeza de que nós, actuais habitantes do mesmo espaço geográfico, nada temos em comum com os asnónios, me devolveu o ânimo e a confiança.


Publicado no Triângulo n.º 7, de 26 de Novembro de 2002









































UM GRANDE FURO


Meus caros leitores, tenho uma confissão a fazer: sou agnóstico. Para ser absolutamente preciso, não acredito em nenhuma das divindades que até agora me foram apresentadas, mas não fecho a porta a posteriores revisões nesta matéria, até porque esta minha incipiente tentativa de jornalismo tem sido até agora bafejada, pela sorte. Tal sorte propiciou-me o objecto desta crónica. Estava eu em alegre passeata por esse magnífico exemplar do arrojo urbanístico, da "avant-garde" em conceptualismo paisagista chamado Jardim Municipal da Quinta da Piedade, quando reencontrei um velho amigo de infância. Depois das efusivas celebrações, explicou-me que tinha emigrado para América (apaziguando de vez o remorso que eu senti durante mais de 20 anos, pois julgava-o ainda de castigo, depois de ter entrado em grande velocidade pelo posto do leite, em cima de um carrinho de rolamentos especialmente preparado por mim, provocando grandes estragos) onde conseguira especializar-se em informática. Trabalha actualmente na Microsoft e trata o Bill Gates por tu. Disse-me então que estava de volta à sua terra de origem para se inspirar na feitura de um novo jogo de computador. Senti-me orgulhoso, quase pairando de tanto ar inspirado. A minha terra objecto de um jogo de computador!
Passados alguns meses recebi pelo correio o cd com o jogo, que gentileza a sua. E é mesmo desse jogo, que promete dar ainda muito pano para mangas, de que vos gostava de falar. O jogo chama-se Póvoa Wreck I. Que excitação! Rasguei o invólucro e enfiei o cd na drive. Abriu-se-me então um vasto leque de opções.
Em primeiro lugar, era necessário escolher o tipo de veículo. A opção era entre um pequeno automóvel, de vidros fumados e escape gigantesco, com um relâmpago desenhado no capot e um enorme jeep de tracção às quatro rodas. Se escolhêssemos o primeiro, o nosso alter ego virtual seria Hillbilly Joe, que traduzo livremente por Zé Parolo. Se a nossa escolha recaísse sobre o segundo, encontraríamos como condutor um tipo anafado, de meia-idade, chamado Supposed Yuppie, isto é, julgo eu, o Executivo da Tanga.
Cabe-nos depois a selecção do circuito. Temos várias hipóteses. A primeira é a Vicente Valent's Circus e corresponde à avenida circular da Quinta da Piedade. Temos também a National Road, correspondente à EN10. Mas o melhor mesmo é o Up and down in the town, isto é andar às voltas.
Vamos então começar...com um arranque barulhento. Aqui vou eu a acelerar, avenida acima.
Instruções (botão F1):
Acertar num cão, 10 pontos.
Acertar num peão, 20 pontos.
Acertar num peão em cima de uma passadeira, 50 pontos.
Ena, grande pinta!
Pedem-nos, neste momento, que seleccionemos a música de fundo. Bem alta, claro!
Vou dar uma voltinha a uma das pracetas. Estaciono o carro bem no meio da praceta e carrego no botão fire in the house. Um prédio está a arder e aí vêm os bombeiros. Deixa-me cá estacionar bem o carro senão os bombeiros ainda conseguem entrar na praceta. Já está! Que grande confusão! Os bombeiros bem tentam mas não conseguem entrar. Vou-me embora ou ainda se lança mais alguém pela janela.
Entro na Estrada Nacional e aqui sim, dá para carregar no pedal a valer! Já marca 100 km/h! ADRENALINA!!!!! Mais um cheirinho e conseguia apanhar o velhote. Fica para a próxima. Afinal é a primeira vez que estou a jogar.
Vou até perto da estação de comboios. Aqui é que é giro! O autocarro da rodoviária cheio de pessoal e eu estacionado mesmo no meio da rua. Este jogo está mesmo bem concebido! Até dá para ver a cara pesarosa dos utilizadores do autocarro! Vamos seguir. Aí vai um pacóvio de bicicleta...só um susto, para o abanar e aprender que a rua é para os carros. Já está! Prego a fundo avenida acima, na esperança que algum transeunte apareça por detrás dos inúmeros camiões estacionados. Nada. Ora bolas!
Vou até ao café beber umas imperiais. Paro a máquina à porta do café e meto o som no máximo. 'Tá-se bem... Só preciso chamar um amigo para jogarmos na versão Two Players, quer dizer, ao despique. Aí é que vai ser mesmo louco, a ver quem comete mais infracções e quem consegue assustar mais pessoas. Um traumatismo craniano vale 100 pontos!
O jogo está de facto magnífico, embora pouco realista, já que é por demais conhecido o bom senso dos portugueses ao volante. Ninguém podia ser tão obtuso, mas, sabem como é, para vender é preciso dourar a pílula. É óptimo para descontrair, depois de um dia a trabalhar e de horas perdidas no trânsito.
Se quiserem experimentar o jogo é só enviarem o vosso pedido para tiagomascarenhas@vizzavi.pt, e eu envio-vos o sítio onde podem fazer o download da demo em versão shareware, claro.


Publicado no Triângulo n.º 8, de 10 de Dezembro de 2002
































FUNGÁGÁ DA BICHARADA


A minha crónica de hoje é dedicada aos mais novos. A memória das histórias que me contaram na infância ainda hoje me prega um largo sorriso.
Era uma vez um leão num reino em que os animais falavam. O rei da selva, preocupado com o estado deplorável e subdesenvolvido do seu reino e convencido ainda da responsabilidade sobre os restantes bichos que o seu estatuto de soberano lhe exigia, sentou-se na clareira e pôs-se a pensar sobre o que poderia ser feito para melhorar aquela selva decrépita, de modo a que diversas espécies de animais não a abandonassem. Resolveu, então, pedir conselho ao animal mais sábio de toda a floresta - o mocho. Ora, a sapiência do mocho só era comparável à sua gula, aliás inversamente proporcional ao seu espírito predador. Assim, o mocho aconselhou o leão a entabular conversações com o castor. O castor, animal de aspecto gorduroso e desgrenhado, era, por aqueles sítios, o bicho mais empreendedor, tendo criado com outros castores de selvas limítrofes um acordo relativo à construção de diques, controlando, deste modo, o curso do grande rio. Atento e informado, sempre que algum animal, vítima incauta do seu predador ficava incapacitado nas artes de caça ou da pesca, oferecia-se para ficar com o seu território por truta e meia. Propôs pois ao Rei Leão que este o deixasse construir canais para esses vastos territórios que havia adquirido, de modo a que os bichos em debandada tivessem acesso aos benefícios do rio, comprometendo-se, em troca, a construir ninhos e tocas. Aceitou o leão de bom grado, regozijando-se, discretamente é certo, o anafado mocho, que a seu lado lhe conferia autoridade.
Logo se iniciaram naquela selva pacata, obras para criar os inúmeros canais, ninhos e tocas. Animais de todas as espécies e feitios acorreram àquele lugar, querendo reservar uma toca, um ninho, ou uma simples liana. Começou o castor por pedir dez trutas por cada ninho ou toca, mas vendo a turba que entretanto se tinha aproximado, foi pedindo sucessivamente mais trutas por cada ninho e cada toca, aconselhando os bichos interessados a dirigirem-se ao seu amigo hipopótamo. O amigo hipopótamo era, em toda a selva, o único animal apetrechado para armazenar trutas, pois não só a sua enorme boca lhe permitia apanhar de uma só vez mais trutas que a da maioria dos animais, como também, graças às excelentes relações de amizade que mantinha com o castor, podia escolher as melhores zonas de pescaria no rio.
Faziam filas intermináveis os animais, esperando que o hipopótamo lhes cedesse algumas centenas de trutas, comprometendo-se a devolver-lhe periodicamente um número considerável de trutas, até perfazer o cedido mais umas centenas de trutas. E assim corria, prazenteira, a vida naquela selva. O leão, a princípio contente por ver a sua selva cheia de vida e bulício, tendo-se inclusivamente cercado de uma roda de conselheiros que incluía outros bichos para além do mocho ainda que igualmente indolentes e matreiros, começou a ficar preocupado com as frequentes disputas entre os animais e com a diferença entre os canais acordados e os efectivamente construídos. Consultou então o castor, tendo-lhe este respondido que a lama com que fazia os canais custava cada vez mais trutas, rápido de espírito, propôs de imediato ao leão a feitura de mais cinquenta tocas e cinquenta ninhos, pagando-lhe com algumas dezenas de trutas. Começou o leão por recusar, estabelecendo o limite de vinte e cinco tocas e vinte e cinco ninhos, mais um canal. Respondeu o castor que não, que assim não podia ser e o leão, convencido pelo seu faminto conselho e pressionado pelos animais residentes a construir ele próprio os canais prometidos, aceitou que o castor fizesse quarenta tocas e quarenta ninhos e um pequeno canal. Bem intencionado, o castor prometeu ainda dar uma palavra de abono junto do seu amigo hipopótamo, para que este cedesse ao leão as trutas necessárias para alimentar o seu concelho e construir os canais que o castor, alegadamente não podia fazer.
E assim vivia aquela selva. O castor laborioso continuava a construir e a pedir milhares de trutas por cada abrigo, trutas que os animais não tinham, mas que o hipopótamo cedia a troco de mais trutas ainda, em pagamentos faseados e com o juro de três trutas por cada dez cedidas. O leão, incapaz de controlar a situação, pedia também ele cada vez mais trutas ao hipopótamo, até que, por desígnio da lei natural, morreu.
Em diversas selvas daquele reino, leões chegaram ao trono e em alguns reinos até mesmo leoas, por vezes cheios de ânimo e de vontade em mudar o curso das coisas, mas invariavelmente acabando por se sentar à mesma mesa do rei anterior. Do outro lado da mesa os hipopótamos, os castores e alguns mochos continuavam a ser os mesmos. Cada vez mais anafados, claro!



Publicado no Triângulo n.º 9, de 23 de Dezembro de 2002


































O QUINTAL DO MEU AMIGO ZÉ

Venho hoje contar-vos a história do meu amigo Zé. O meu amigo Zé é um tipo porreiro e bonacheirão, mas um bocadinho bronco. Ainda jovem, expulsou do seu quintal uns vizinhos do lado de baixo da rua que teimavam em invadir o seu espaço. Expulsos os agressores com garbo, decidiu Zé pôr-se à estrada, movido por uma curiosidade incontrolável. Foi conhecendo quintais e baldios cada vez mais longe do seu , noutras ruas até. A empresa mostrou-se proveitosa. Recolhia belos frutos das árvores dos quintais alheios, enquanto os donos destes dormiam ou estavam distraídos, para vendê-los depois aos vizinhos mais próximos. Durante muitos anos viveu deste expediente, deixando o seu quintal quase abandonado.
Entretanto, alguns dos seus vizinhos decidiram prescindir dos serviços do Zé e passaram a ir buscar eles próprios os frutos. O meu amigo Zé entregou em profunda depressão. Com o quintal por mondar nada mais lhe restou que mandar os seus próprios filhos trabalharem nos quintais dos vizinhos, maiores do que o seu e sobretudo já amanhados. Estava de novo feliz! Ao fim de cada jorna, trazia o carteiro os proventos de seus filhos, permitindo-lhe criar, num cantinho do quintal, um galinheiro. Por vezes, Zé encontrava-se com os vizinhos no café e queixava-se do estado do seu quintal. Fartos de ouvirem os seus lamentos, os vizinhos do Zé concordaram em ajudá-lo. E assim colocaram à entrada da sua porta uma caixinha onde diariamente depositavam muitas moedas. O Zé nem queria acreditar! Os vizinhos iam-lhe pagar para limpar e desbastar o seu próprio quintal. O Zé era no entanto um tipo esperto. Com as moedas na mão decidiu que o melhor mesmo era divertir-se e comprar todas as coisas boas que os seus vizinhos já tinham. Abriu um carreiro entre a porta de casa e o portão que dava acesso aos quintais vizinhos achando que o seu quintal nunca estivera tão catita. No café ostentava roupas tão vistosas como os vizinhos, deixou de beber aguardente manhosa e pedia whisky, passou a cortar a unha do dedo mindinho e comprou um telemóvel. Falava inclusivamente de economia, ciência política e outros assuntos com tal verborreia que deixaria qualquer papagaio corado de vergonha.
Só havia um problema, a caixa de depósitos deixaria de funcionar dentro de três anos. No entanto, o Zé não pensava nisso. Com a proverbial inteligência que o tinha caracterizado ao longo dos anos, o Zé continuou em festa permanente, convencido que acabada esta, noutra providência pensaria. Na Divina Providência, presumo eu.



Publicado no Triângulo n.º 10, de 7 de Janeiro de 2003













O MECENAS

Meus caros leitores, venho hoje revelar-vos que, além de funcionário público, sou estudante de Direito. Na prática, sou um M&M amargo. Já não me bastava ser Mandrião, como ainda me candidato a Malandro. O curso de Direito é em grande parte constituído por cadeiras onde os alunos procuram resolver casos práticos, isto é, ficções que pretendem retratar o mais fielmente possível a realidade. É um desses casos práticos que trago hoje ao vosso conhecimento.

António, jovem empresário da construção civil, resolve doar 500 contos a uma instituição particular de solidariedade social, ao abrigo da lei do mecenato, por acaso dirigida por Bento, seu amigo de longa data. Na realidade António não doou nada, pois Bento é dono de uma empresa de importação, e passou uma factura que refere que a venda foi constituída por vários milhares de fraldas, produto descartável, como convém. António fica com 250 contos, Bento com igual montante. Aproveitando uma singela homenagem ao benfeitor António, pela sua doação filantrópica, Bento reclama da autarquia local a construção de um novo equipamento para a IPSS que abnegadamente dirige. David, presidente da autarquia acede na construção e sendo um homem moderno e de vistas largas, candidata esse projecto a fundos comunitários. António ganha evidentemente a empreitada e compromete-se a construir o equipamento por 100.000 contos. Aliás António ganhou nos últimos tempos várias empreitadas na região. Consegue assim reduzir os custos unitários e constrói o equipamento por 60.000 contos, mas em nome do rigor das finanças públicas apresenta uma conta final de 100.000, o valor orçamentado. Acrescenta apenas 10.000 contos porque a empresa que projectou a obra (por acaso pertencente a um cunhado seu) não avaliou devidamente os custos e porque sempre gostou de números redondos e assim lucra 50.000 contos. Feitas as contas, António teve um lucro de 250.000 contos, pois tinha mais 4 obras na zona. Sabe entretanto de um terreno pertencente a uma família com falta de liquidez e apresenta o projecto a David, falando com o gerente do banco local, pedindo um financiamento para a construção de uma urbanização, aproveitando também para abrir uma conta nas ilhas Caimão, onde coloca os 250.000 contos que ganhou anteriormente. Posto perante algumas vozes discordantes do seu projecto, António rapidamente chegou à conclusão que se ele, homem simples e terra-a-terra, achava o empreendimento interessante, mais o achariam os cultos e esclarecidos que o contestavam, pois podiam observá-lo à luz da estética e da sua qualidade arquitectónica. Descobriu que esses homens iluminados, que passavam horas a projectar o mundo, quando regressavam ao mundo dos vivos, vinham desejosos de materialidade, por assim dizer. Nada que uns belos T5 na cobertura das mais altas torres não saciassem. Erigia-se assim a Urbanização. António factura 5 milhões de contos e não querendo deixar os seus créditos por mãos alheias, cria um conjunto de empresas para prestarem os serviços urbanos (recolha de lixo, jardinagem etc.) na sua urbanização. Por especial atenção ao seu amigo Presidente David faz um preço "em conta" e aproveita os funcionários a contrato que David foi obrigado a despedir em nome da contenção de despesas. Todos lucram: lucra David que diminui as despesas com pessoal, sendo por isso elogiado até pela oposição e lucra António que aproveita o conhecimento que os trabalhadores adquiriram, até porque como ele bem sabe, pois também possui uma empresa especializada em formação profissional, dirigida pela sua mulher, a formação, além de cara é, na maior parte das vezes uma fraude. Bem, na verdade as despesas com pessoal diminuíram 50.000 contos no orçamento da autarquia e só o contrato de concessão que António assinou com David custa aos cofres públicos 250.000 notas por ano. Mas são um investimento, claro. António, católico por formação, jura a si mesmo que assim que não estiver atarefado a constituir uma nova empresa de prestação de serviços ou a projectar uma moderna urbanização, vai visitar as ilhas Caimão.




Publicado no Triângulo n.º 11, de 21 de Janeiro de 2003










































O BOM SAMARITANO


A vida moderna tem destas coisas: metem-nos em caixotes e obrigam-nos a falar com os vizinhos. Criou-se essa figura sinistra conhecida por assembleia de condóminos.

Encontro-me em conflito com um vizinho, um tipo execrável, o Rashid, que bate na mulher. Pior ainda, fui eu que apresentei o tipo à mulher, pois pareceu-me, na altura, o indivíduo certo e antes que um outro vizinho se insinuasse, resolvi propiciar o romance. A Munira (é esse o nome da ofendida) tem uma bela vinha e com o casamento juntei o útil ao agradável: tinha um tipo de confiança para controlá-la e bebia o vinho à borla. Esta prática é aliás corrente no prédio. O Pierre, por exemplo, vizinho do 4ª esquerdo, de vez em quando expulsa o marido da jovem negra que assegura a higiene do prédio, aproveitando para passar lá umas noites e deliciar-se com os acepipes que ela tem no frigorífico. Um "bom vivant"!. Já o John, vizinho do 5º direito, incapaz de se manter amantizado com metade do prédio, resolveu recolher ao seu apartamento e passa o tempo a cravar-me vinho, azeite e senhas de gasolina.

Propus na assembleia de condóminos que o Rashid fosse expulso, alegando a inadmissibilidade da violência doméstica nos tempos que correm. Na verdade pouco me importa se a Munira é agredida ou não. Sou um fervoroso defensor do principio "entre marido e mulher, não metas a colher". Estou é farto de acompanhar as minhas refeições com coca-cola. Quero o vinho! Além do mais estou convencido que mais vale um marido que saiba manter o respeito que outro que permita que a sua mulher faça o que bem entender. E nesta perspectiva mantenho com alguns maridos truculentos uma boa relação de vizinhança. Podem bater na mulher, mas só na medida do necessário e mediante uma pequena comparticipação em géneros para a minha dispensa, para que eu possa verificar se os fins justificam os meios.

Já avisei os restantes condóminos: qualquer dia farto-me de beber coca-cola e entro pela casa a dentro da Munira, dou uma carga de porrada no Rashid, corro com ele, coloco no seu lugar o Mohamed, um empregado meu de confiança, mas o vinho fica só para mim!



Publicado no Triângulo n.º 12, de 4 de Fevereiro de 2003












OS ÓRFÃOS DO MURO


Certamente que a maioria dos meus leitores formaram a sua ideia do mundo com base numa escolha quase inevitável. O muro condicionou o pensamento e as ideias de toda a gente. Mesmo aqueles que nunca se sentiram particularmente inclinados para nenhum dos lados, tiveram que optar por um ou outro lado. Quando se diz do lado de cá do muro é apenas uma questão de perspectiva. O espectro das cores das coisas que nos fascinam foi diminuindo à medida que o muro foi crescendo, como que tapando o Sol. E assim, aqueles que viam o mundo em tons de amarelo, de rosa ou de castanho, passaram a vê-lo ou preto ou branco. Gerações foram condicionadas por esta perspectiva, fundamentaram a sua existência nestes princípios. E à medida que as posições se extremavam, mesmo aqueles que não se reviam rigorosamente em nenhum dos lados do muro foram obrigados a fazer uma escolha. O muro caiu, entretanto. Seria plausível que no lado que mais lutou para que o muro permanecesse surgissem hordas de órfãos confusos perante o Sol sem peneira. E assim sucedeu. Mais curioso e cruel foi terem surgido igualmente muitos órfãos do lado de cá (na minha perspectiva). Precisamente aqueles que mais se bateram para a queda do muro eram agora os mais confusos. Sem muro, sem contra-poder, todos os fundamentos das suas criações intelectuais ruíram, com o muro. Tinham sido ensinados a pensar sempre da mesma maneira, no pressuposto do inimigo, num espírito absolutamente maniqueísta e sentiam-se agora igualmente órfãos, como os órfãos do outro lado.



Publicado no Triângulo n.º 13, de 18 de Fevereiro de 2003
























O BOATO


Ao longo das crónicas que quinzenalmente são publicadas, acredito que os meus leitores tenham muitas vezes suspeitado da verosimilhança das minhas histórias. Pois bem, a seguinte história não só é verosímil, como verídica.

Nado e criado na Póvoa, o meu quotidiano infantil era circunscrito ao Largo da Praça, com esporádicas incursões aos bairros "inimigos": As Escadinhas, o Alto, o Cinema ou a Rua A. Nas tardes em que não havia nenhuma jogatana ou incursão bélica em território inimigo, ficava-me pela Praça. Uma das minhas actividades preferidas era a de atirar diversos objectos aos homens que, no intervalo do dominó, se punham a apanhar Sol em frente à sede da bola. Colocado estrategicamente por detrás do muro do quintal do meu avô, aproveitava o ângulo favorável para bombardear o inimigo sem que ele soubesse de onde vinha o ataque. Usava diversos tipos de munição, desde ração de pombo a milho, mas sem dúvida que a minha preferida era a uva, de preferência calibre 3, cápsula roxa, de fabrico ribatejano. O ataque continuava até ser interrompido pela minha avó, que me chamava "judeu" e "maltês". Descia então a Travessa Carvalho Araújo, com a "carinha na água" para ver no terreno os estragos provocados pelo ataque. Passava entre as vítimas, discreto e silencioso por fora, em plena euforia por dentro, que regressavam, em debandada às bases, leia-se Sede da Bola e Taberna do Tí Luís. Ora, numa dessas tardes, igual a tantas outras de vitórias estrondosas, estava um trabalhador (nesse tempo não havia funcionários e muito menos colaboradores) dos TLP, pendurado num escadote à beira da rua, a arranjar os fios telefónicos, quando, de repente, passou um carro e derrubou o escadote. O homem caiu estatelado no meio da rua. Fiquei estupefacto a olhar as tropas inimigas a socorrerem o homem, que entretanto se levantara, ainda contundido e a sangrar da testa. O feroz "sniper" dera agora lugar ao miúdo assustado, mas depressa percebi que nada de verdadeiramente grave acontecera. Chamada a ambulância, o homem mostrou-se mesmo relutante em ir para o hospital, mas acabou por ceder. Com tanta animação, o estômago do pequeno guerreiro começou a dar horas e eis-me a fazer uma incursão ao frigorífico da minha avó, preparando uma sandes com os chouriços que tinham sobrado do cozido. O Tulicreme (para os meus leitores mais novos esclareço que o tulicreme é o avô do bolicao, mas sem pão) bem podia abanar-se sempre que abria o frigorífico, gritar-me "Barra-me no pão! Barra-me no pão!", que eu permanecia fiel à farinheira e ao chouriço de sangue. Com a enorme sandes na mão voltei à rua e ainda não tinha andado cinquenta metros, ouvi um diálogo entre duas senhoras que nunca mais esqueci. Dizia uma, visivelmente perturbada, para a outra: "Coitado! Quando o meteram na ambulância, já ia morto, com certeza!". Lembro-me de ficar espantado, tanto ou mais que com o próprio acidente. Eu assistira a tudo e tinha a certeza que o homem não só não ia morto, como estava consciente. Este episódio esclareceu-me um pouco sobre o espírito humano. E gostaria de aproveitar a ocasião para agradecer publicamente ao acidentado, que hoje provavelmente goza duma boa reforma dos TLP, orgulhoso do neto, que está a acabar o curso de engenharia no Técnico e está a pensar casar com a sua namorada de sempre, a Cátia Andreia, neta do vizinho do lado, reforçando que aquele seu acidente não foi em vão. E claro, agradecer à senhora que involuntariamente contribuiu para o meu prudente cepticismo em relação ao mundo.


Publicado no Triângulo n.º 14, de 5 de Março de 2003

O PARADOXO


Imagine o leitor uma comunidade constituída por 100 pessoas.

Em média, um habitante dessa comunidade gasta 50% do fruto da sua actividade em alimentação, 30% na fortificação da aldeia e 20% na sua habitação.

Acontece que na aldeia vizinha gastam 40% na fortificação e só 40% na alimentação. A "nossa" aldeia, após um grande esforço, passa a gastar 50% em fortificação e em meios de ataque e acaba por derrotar a aldeia vizinha. Depois do furor bélico vem o amor carnal e como resultado a aldeia passa a ser habitada, em poucos anos, por 200 almas.

Decide-se então dividir a aldeia e os mais dotados nas artes da guerra deixam de ser agricultores, assim como os mais temerosos passam a dedicar-se exclusivamente ao cultivo e à pastorícia. Entretanto, a aldeia vizinha, ciente da sua inferioridade militar, concentra-se na produção alimentar. Logo aparece com produtos com menor custo e em maior quantidade, trocando alimentos por armas. A nossa aldeia, não querendo perder a sua independência, procura desesperadamente produzir os seus alimentos ainda mais baratos.

Passaram-se muitos, muitos anos, as aldeias expandiram-se, tornaram-se cidades, nações. Sucessivas vagas de guerra e amor passaram.

A necessidade de produzir mais com menos custos foi crescendo. Hordas de sábios e cientistas estudaram até à exaustão cada fruto e cada animal até os reduzirem a um agregado de fórmulas bioquímicas manipuláveis.

E de facto, hoje e em média, um habitante da aldeia global só gasta 20% do seu rendimento em alimentação. Eis o triunfo.

É verdade que gasta outros 20% do seu rendimento em comprimidos para combater a obesidade provocada pela alimentação, mais 10% em ginásios para "manter a forma" afectada pela má alimentação e que contribui com outros 10% para que o Estado construa hospitais, que se enchem de pessoas enfermas de se alimentarem erradamente.

Dirá o leitor mais atento que o homem médio gasta hoje 60% do seu rendimento em alimentação ou por causa dela, ou seja ainda mais que o aldeão do início. Pois lamento informá-lo, mas está errado. Como diria K. Popper, "o conhecimento é adquirido por tentativa e erro". Por isso, quando estiver frente a uma realidade rotulada de enchido, que sabe a enchido, tem a forma de enchido e cheira a enchido, mas que de facto é um chouriço cibernético ou uma morcela andróide, lembre-se da teoria do conhecimento de Popper. E em caso de erro, tenha uma pastilha digestiva à mão. Se observar bem os rótulos, verá que tanto a morcela como a pastilha provêm da mesma unidade industrial, embora de secções diferentes, claro. E não se preocupe com nitrofuranos, queijo de Nisa made in Taiwan ou sopas feitas de estrume (lembre-se da velha máxima que diz que na natureza, e na empresa, acrescento eu, nada se cria, tudo se transforma).



Publicado no Triângulo n.º 16, de 1 de Abril de 2003
















































LÉXICO

A língua portuguesa, como coisa "viva" que aparenta ser, tem mutações constantes (eis um paradoxo inadvertido...), apresenta manifestações que variam ao sabor (ou melhor ao som) da sua promíscua dança com outras línguas. Talvez por isso, sempre que dá um passo menos previsto ou desejado, assumo uma posição passiva, aguardando que esse passo se enraíze ou fique perdido na história. Não deixo no entanto de apontar essas variações. É um estrato desses apontamentos que aqui vos deixo.

Janela de Oportunidade - Esta novel expressão lembra-me duas coisas: primeiro a história de Romeu e Julieta. Se não fosse a janela Romeu não teria oportunidade de "privar" com Julieta. Depois as minhas primeiras viagens de comboio, em que as janelas eram uma oportunidade para mandar fora o inútil: cigarros, jornais, restos de comida, eventualmente o passageiro sentado à nossa frente. Hoje a expressão designa alguém que olha para os acontecimentos como um miúdo olha para um carrossel. Na primeira oportunidade entra para o bicho mais espampanante ou ruidoso. A janela de oportunidade substitui a ausência de critério. O que interessa é entrarmos e não onde entramos. Chama-se a isto pragmatismo e em Portugal temos muitos adeptos deste desporto radical. Como por exemplo, o Zé Manel. Esse que estão a pensar. O da família dos pércidas.

Diagnóstico - outra palavra já velha de séculos, mas sempre com uso renovado. Faz parte do léxico de qualquer candidato a político, a tecnocrata, a comentador televisivo. Primeiro faz-se o diagnóstico. Seja qual for o assunto ou a percepção do mesmo que se tenha, faz-se um diagnóstico. No tempo em que as pessoas "públicas" eram menos pomposas e mais substantivas, estes "diagnósticos" chamavam-se bitaites. O resultado, ou melhor, o diagnóstico é sempre o mesmo: o sapo fica surdo quando lhe cortam as patas.

Cirúrgico - a palavra não é nova, mas tem sido utilizada profusamente. Designa precisão. Assim, no futebol, temos os cortes cirúrgicos. Já na guerra temos os bombardeamentos cirúrgicos. Duplamente cirúrgicos. Se não acertam com precisão no alvo, obrigam a uma intervenção cirúrgica. Na maior parte dos casos autópsias.

Competitividade - Ciclicamente, uma das ditas ciências sociais toma a dianteira e pretende assumir-se como ciência agregadora das outras todas. Já aconteceu com a sociologia, com a psicologia e acontece actualmente com a economia. É um sintoma de crescimento. Afinal a economia é uma jovem ciência com pouco mais de 200 anos. E assim, como qualquer jovem panfletário, grita palavras de ordem. Como por exemplo competitividade. Competir significa pretender alguma coisa simultaneamente com outrem. É esse o grande objectivo da nossa existência. Sermos melhores que os outros, independentemente do objecto. Temos é que ser melhores que o vizinho, sob a ameaça do vizinho ser melhor que nós. Esta visão das coisas consome-se na sua própria estreiteza. Os portugueses são muito competitivos. Na sinistralidade rodoviária, no consumo de álcool, na fuga e na fraude ao Fisco. E isso é bom, porque o que seria da nossa sociedade sem um forte sector empresarial de bate-chapas? E da nossa indústria de engarrafamento? Já reparou o leitor no que seria a nossa vida se não pudéssemos invejar e satanizar o vizinho que mais esperto que nós, não paga impostos?

Pro-activo - Esta palavra espanta-me. O que é um pro-activo? Aquele que actua antes da acção? Suponho que pro-activo é um tipo que na falta de acção, inventa ele mesmo a acção. Do estilo de morar na Póvoa e trabalhar no Forte da Casa, mas dar a volta pela 2ª circular só para contribuir para a acção, para o bulício do trânsito, ou seja, para a ausência de acção. Com a celeridade erosiva que os pro-activos nos são apresentados, não deve tardar muito a surgir a nova geração: o pré-pro-activo.


Prometo voltar oportunamente a este tema. Desejo-vos um bom dia. Pro-activo, claro.



Publicado no Triângulo n.º 18. de 29 de Abril de 2003





































FREAK SHOW


Uma das características mais marcantes da sociedade contemporânea é o estabelecimento de princípios que ninguém contesta. Uma dessas "ideias feitas" é a que afirma que o exercício de direitos por parte de particulares ou privados não tem limites.

Ora, o próprio conceito de direito implica a existência de um dever conexo. Vem este discurso a propósito do triste espectáculo que as televisões nos têm oferecido, sob a capa de informação. Outra das ideias feitas é aquela que com esperteza saloia diz "quem não gosta, muda de canal".


Convém desde já explicitar que não defendo qualquer tipo de censura, isto é, de imposição aos meios de comunicação social de qualquer tipo de programação de acordo com a moral social dominante. Apenas acho que o direito à livre expressão e à informação não é um exercício de livre arbítrio.

A liberdade de programação e de informação acaba onde começa a violação dos direitos, liberdades e garantias e sobretudo quando atinge a dignidade da pessoa humana.


Não quero dizer com isto que defendo uma televisão asséptica ou inócua. Parece-me um exercício legítimo da liberdade de programação e de expressão a exibição de temas polémicos ou até mesmo de programas do tipo "Big Brother" e afins. Nesses programas são as próprias pessoas que prescindem da sua reserva da intimidade. Estão legitimamente a manifestar a sua vontade. É no entanto substancialmente diferente o fenómeno que em concreto me leva a escrever este artigo.

Tenho reparado que os telejornais dos dois operadores privados tem competido em torno de um tema sórdido: a deformidade e as doenças particularmente incapacitantes de crianças e jovens. E assim, se num dia a SIC apresenta uma criança que não vê, não fala, não ouve, no dia seguinte a TVI mostra despudoradamente um jovem que não só não vê, fala ou ouve, como não se mexe. Vasculham à procura da história mais pungente, da situação de maior fragilidade, daquela que em termos de écran mais resulte.

Se um adulto resolver mostrar na televisão a sua desgraçada herança genética ou divina, eu posso não ver, mas acho que está no seu pleno direito. Mas não vejo como é que se enquadra no direito à informação a exposição da mesma situação quando se trata de um menor, criança ou jovem. É unanimemente aceite que um miúdo de 5 ou 6 anos não tem capacidade de exercício, nem uma vontade formada e plenamente consciente. E a autorização dos pais é uma fina capa de pseudo-legalidade injustificável. Estamos perante uma clara violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos de personalidade da infância e da juventude E nem serve de argumento a pretensão que a notícia é uma forma de ajuda, porque os fins não justificam os meios e porque ao ritmo frenético de exibição de "casos", rapidamente o assunto será banal e as televisões vão mudar a sua mira.

Este dever de proteger os nossos concidadãos que não o podem fazer por si é extensível a toda a sociedade. Passa pela exigência de um melhor apoio do Estado a estas situações, mas igualmente por uma luta interior, dentro de cada um de nós; uma luta contra o nosso egoísmo e pela ajuda voluntária nas instituições que se dedicam a este fim.



Publicado no Triângulo n.º 23, de 8 de Julho de 2003












































EFFICIENTIA IMPERII (EM LATIM MACARRÓNICO)


As recentes polémicas sobre as Pescas e a Política Agrícola Comum, levantam diversas questões pertinentes, para além do óbvio aproveitamento da questão, por parte daqueles que gostam de levantar velhos e atávicos fantasmas contra um possível iberismo.

A questão fundamental prende-se com o conceito de sociedade que está subjacente a todas estas medidas. Esse conceito funda-se no princípio da eficiência que proclama que cada um deve fazer aquilo que faz melhor e defende por isso a divisão internacional do trabalho.

Trocando por miúdos: esta teoria defende que seríamos todos mais eficientes, logo mais felizes se não perdêssemos tempo a fazer coisas para as quais não temos jeito nenhum. Assim, levando este princípio ao seu ponto óptimo, o Brasil só devia produzir telenovelas e jogadores de futebol, os japoneses dedicar-se-iam à produção de electrodomésticos e afins, os cabo-verdianos à estiva, a Inglaterra seria uma gigantesca casa de apostas e a França uma queijaria enorme. Presumo que Portugal se tornaria num gigantesco aeroporto onde, no intervalo das apostas, velhos reformados ingleses desembarcariam, rumo à praia.

Esta teoria é tão estúpida como o marxismo. As teorias sociais, por muito díspares que sejam nas conclusões, têm que partir de um princípio: a natureza humana. E da premissa que todo e qualquer homem tem uma multiplicidade de interesses, que é da sua própria dificuldade em concretizá-los, ou seja, da sua ineficiência, que surgiram, surgem e surgirão os avanços da Humanidade. Aplicada esta teoria, esgotar-se-ia qualquer possibilidade de Camões ser escritor. Seria um bagageiro no aeroporto da Portela e estou a imaginá-lo a carregar as malas de um balofo e rubro reformado inglês, e arfando diria ?Soul my gentile one, that you broke yourself so early of this life discontents...? ao que o inglês, na sua infinita bondade paternalista responderia ?Poor man! So young and already widower! They die early here in the South! Take two pounds to make your wife?s grave.?. E Eusébio seria um eficiente apanhador de castanha de cajú.

Quem constrói estas teorias, apartadas de qualquer realidade, não consegue entender que eu, quando canto ou quando toscamente faço uma fisga, não pretendo que ela seja eficiente e que provavelmente sem fazer a fisga inútil não terei vontade de desempenhar uma função socialmente útil. Que só a noção de que sou um escritor medíocre me dá alento para continuar a escrever, procurando sempre melhorar.

Além de que a vida nesta sociedade eficiente seria uma chatice tremenda. Já imaginou o leitor vestir todos os dias roupa feita com a melhor lã neozelandesa, a almoçar invariavelmente carne argentina com arroz chinês, regada com coca-cola, 365 dias por ano?

Mas a justiça divina ou a justiça humana reservaram um paradoxo cruel para os cultores desta teoria da eficiência: fundada na necessidade de liberdade do Homem, a sua concretização levaria exactamente ao fim dessa liberdade. Neste mundo hiper-racional, todos escolheriam a mesma coisa para determinada função, ou simplesmente não escolheriam, limitar-se-iam a aceitar aquilo que o critério objectivo da eficiência determinasse. Perante este cenário, todas as formas de totalitarismo que já tivemos, ao longo da história, parecem-me singelas e garridas ditaduras caribenhas.



Publicado no Triângulo n.º 24, de 22 de Julho de 2003












































LA VALISE DE PANDORA


Caros leitores,


Os mais atentos já repararam que mantenho diversas actividades. Não serei propriamente biscateiro (o que é uma falha na minha portugalidade), mas tenho a minha dose de loucura e poesia, pois claro.

Talvez inspirado pela pop-culture que povoou a minha infância e juventude (o meu primeiro símbolo sexual foi a Pipi das Meias Altas) tenho dedicado os meus poucos tempos livres à descoberta de coisas raras, espécie de Indiana Jones de trazer por casa.

Pois bem, levado pelo senso prático e na impossibilidade de explorar longínquas ilhas da Micronésia, resolvi aventurar-me nos esgotos de Lisboa. Mas perguntará nesta altura o leitor: que estranha pista terei seguido? Posso garantir-vos que não segui as indicações de nenhum papiro ou manuscrito antigo; limitei-me a estar atento à comunicação social e aos boatos que vão circulando.

Embrenhei-me então pelos esgotos da Capital e seguindo apenas o meu instinto, finalmente descobri aquilo que muitos diziam existir mas que ninguém ainda tinha visto: A Caixa!

Cravada no lodo, com a tampa entreaberta e exalando um cheiro ambíguo, doce e cálido, mas ao mesmo tempo repelente, a origem de todos os males estava ao alcance da minha mão. Pareceu-me ouvir uma música ao longe, procurei apurar os sentidos...seria o "addicted to love"? Eu estava perto da Câmara de Lisboa, se calhar a música vinha do gabinete presidencial...ou então era apenas confusão mental da minha parte, devido à excitação.

Nervoso, debrucei-me sobre a caixa e empurrei a tampa. O seu interior confirmava todos os meus temores. Dentro da caixa estavam outras pequenas caixas, de dentro das quais saíam periodicamente todos os males que conspurcam a nossa sociedade. Lá estava a caixa dos políticos, com uma caixinha ainda mais pequena lá dentro, com o rótulo autarcas; ao lado a caixa dos funcionários públicos, dos futebolistas, dos advogados, dos que fogem ao fisco, dos aceleras, dos polícias. A náusea impediu-me de continuar a ler os rótulos. Estava confirmada a suspeita levantada, nos jornais e na televisão, nas ruas e nos cafés, por todos esses homens de bom senso, pelos verdadeiros patriotas: todos os males que corrompem o nosso país, os nossos novecentos anos de glória, são provocados por entes que, embora aparentando ser portugueses como nós, são afinal criaturas geradas na maldita caixa.


Está pois justificado o discurso de todo o português honesto e íntegro, que quando se refere a essas criaturas diz sempre: os políticos, os futebolistas, etc.. Aquilo que aparentemente era ilógico, pois essas "pessoas" seriam, presumia-se, cidadãos como nós, os puros, era afinal uma manifestação de um instinto visceral, de uma certeza íntima de que o mal provinha de algo externo, de algo que sendo antropomórfico, tinha uma substância radicalmente diferente da nossa portugalidade.

Só ainda não descobri quem ali colocou a caixa. Mas todos os indícios apontam para os Castelhanos.



Publicado no Triângulo n.º 25, de 12 de Agosto de 2003









































MAIORIA SILENCIOSA


A palavra maioria tem funcionado como um salvo-conduto no mais recente período da democracia portuguesa. Os maiores dislates são legitimados pela pressuposta existência de uma maioria apoiante. A expressão "a maioria dos portugueses" faz-me lembrar aquela partida que consiste em oferecer um grande embrulho com uma minúscula prenda lá dentro.

Vejamos a maioria do Povo Português (subentende-se com capacidade eleitoral activa): 8.902.713. Desses quase 9 milhões só votaram 5473655 e desses quase 5 milhões e meio de votantes só 2.200.765 votaram no partido vencedor. O grande embrulho dá uma prenda muito pequenina. Já nas eleições anteriores se tinha repetido o mesmo cenário (8.864.604 inscritos, 5.415.102 votantes e 2.385.922 votantes no partido vencedor).

Justifica-se este nível de abstencionismo com uma falácia: o mal não é só nosso, é da Europa, com uma democracia velha de 50 anos. Acontece que nós não temos democracia nem há 50, nem há 40 nem sequer há 30 anos e temos uma das maiores taxas de abstencionismo de toda a Europa. Acresce que enquanto no Norte da Europa, a participação cívica é um facto quotidiano e complementar da actividade dos partidos políticos, em Portugal, em consequência de mais de 40 anos de um regime retrógrado, não se fomentou (antes se esterilizou) a manifestação civil.

O fenómeno parece-me ser preocupante, mas não é um problema dos políticos ou dos partidos. É um problema de todos. Há que fazer uma errata: quando se ouve alguém dizer "não ligo à política", deve ouvir-se "não gosto do funcionamento dos partidos", porque não é plausível que exista algum português que não se identifique com pelo menos um partido do espectro ideológico, que começa no Dr. Garcia Pereira e no seu M.R.P.P. e acaba numa extrema-direita camaleónica. A não ser, claro, os "anarquistas", normalmente agraciados pelo Estado com chorudas subvenções.


Porque há um ponto em que a legitimidade se torna meramente formal, quando as ditas maiorias são maiorias de minorias. Hoje o maior partido português é o P.P.A., o Partido Popular da Abstenção. Ora, a partir do momento em que há mais abstencionistas que votantes, as regras da democracia estão pervertidas, a maioria não expressa a sua vontade. É a chamada maioria silenciosa. Meio caminho andado para um novo Estado. Ou um Estado Novo.



Publicado no Triângulo n.º 27, de 16 de Setembro de 2003








A DIFÍCIL ARTE DE SER PAI (OU MÃE, QUE NESTES TEMPOS DE FAMÍLIAS MONOPARENTAIS TEMOS QUE SER POLITICAMENTE CORRECTOS)


Confesso que já andava preocupado, com a minha auto-estima abalada porque, apesar de quinzenalmente assinar estas "crónicas", não tive, até agora qualquer correspondência por parte dos leitores, se exceptuarmos aquele canídeo que me escreveu numa das primeiras edições.

Ora esse facto, para um narcisista assumido como eu sou, é uma espécie de enxaqueca permanente, uma moínha que se vai adensando.


Felizmente as minhas preces foram ouvidas e um leitor preocupado escreveu-me, pelo que passo a transcrever as suas linhas:

Caro Sr. Nuno Augusto,

Sou pai de um rapaz que no próximo mês de Novembro vai fazer 16 anos e no último fim-de-semana fiquei surpreendido quando ele me pediu para termos uma conversa. Comecei por pensar que a "conversa" iria ser sobre o sexo feminino, mas depressa me apercebi que a coisa era bem mais grave. O rapaz entregou-me uma lista intitulada "As cenas que eu preciso para ir para a escola" e declarou-me que ou eu lhe comprava tudo aquilo ou ele ia "bufar" à mãe (minha esposa) as minhas saídas aos sábados à noite. Devo confessar-lhe que não faço nada de mal aos sábados à noite. Limito-me a ir com a rapaziada do café a um bar ali para os lados de São João da Talha, ver uns shows de strip-tease, mas só vou para não parecer mal, para que a malta não comece com "bocas", pois não aprecio aquele género de mulheres, gosto mais da portuguesa, pequenina e roliça, se bem me entende. Tive vontade de lhe dar uma bofetada, mas contive-me. E pûs-me a olhar para a lista: um telemóvel com sons polifónicos (não digo a marca porque é proibido, não é?), um portátil (explicou-me que era um computador para andar de um lado para o outro) um conjunto de roupas com marcas estrangeiras (perguntei-lhe se era a farda da escola, respondeu-me com um seco "és mesmo um cota básico") e um pricing, um pressing, perdão, um peircing (pela explicação é uma bugiganga de metal que os miúdos cravam ao corpo). Preço total: quase 3.000 euros. E livros, perguntei eu. Isso também pode ser, mas só quero se a mala for (disse uma marca qualquer, estrangeira), respondeu. E avisou-me desde logo que assim que fizesse os 16 queria uma mota, porque já não era nenhum chavalo para ir para a escola de camioneta. Estou banzado, Sr. Nuno. Nunca pensei que dar uma educação aos nossos filhos fosse assim tão caro. Nem que para aprender português fosse preciso uma mota. Estou definitivamente a ficar velho e ultrapassado. E com isto tudo lá se vai o dinheiro que andei a poupar para ir com a minha Joaquina a Benidorm. E não me chega. Pergunto-lhe, Sr. Nuno, o rapaz ainda agora vai no 8º ano, pois já chumbou algumas vezes, o que me vai pedir quando chegar ao 12º? Um helicóptero por causa do trânsito?


António José Silva
Pai


Pois bem, Sr. Silva, devo esclarecer-lhe uma coisa: não tenho filhos e por isso, embora solidário consigo, ainda não vivi essa experiência. Faço é votos para que o seu rapaz acabe o secundário e entre no ensino superior, tire um curso, mesmo que seja uma engenharia de que ninguém ouviu falar e consiga arranjar um emprego. E tenho a certeza que se lhe comprar todos os itens da lista ele estará preparado para o mercado de trabalho. Ou melhor, como dizem agora, para um nicho do mercado. Algures entre uma loja de roupa num centro comercial e uma oficina de motas. Que é um nicho tão bom como qualquer outro, claro.



Publicado no Triângulo n.º 28, de 30 de Setembro de 2003





































O DJ PSICÓTICO


Quando eu era puto, nos idos anos setenta (antes de me tornar nesta criatura insuportável, longe da juventude mas ainda distante da sageza da meia-idade, existiam inúmeros slogans e anúncios que marcaram indelevelmente a minha personalidade. Desde o clássico anúncio do Restaurador Olex (que anunciava que um branco de carapinha e um preto de cabeleira loura não era normal), passando pelo "Força, força, companheiro Vasco", por aquela canção das "pipocas ao almoço" e acabando nesse magnífico desígnio de toda uma sociedade, apreendido no "Pão, saúde, educação e habitação" (não sei se era exactamente assim.
O que proponho hoje ao meu paciente leitor é um exercício relativamente simples: trata-se de verificar quantos destes princípios foram efectivamente prosseguidos.
Quanto ao pão, julgo que estamos conversados. Não há hoje terriola que não tenha o seu hipermercado junto à respectiva rotunda. Perdão! O seu instrumento de redistribuição de tráfego junto do qual se situa a grande superfície comercial correctamente integrada na paisagem. Menos correctamente integrados na paisagem são os indigentes que aguardam que os caixotes de lixo dos hipermercados se encham. Mas esse magnífico instituto que é a auto-regulação permitiu que os caixotes fossem colocados num ponto do espaço de modo a não incomodar o normal tráfico comercial nem a estragar o perfume de classe média com que todos saímos, de cartãozinho de crédito correctamente aconchegado na carteira. Antes de me acusarem de reaccionário e outros nomes afins, sugiro que consultem os dados disponíveis (pelo menos até ao Ministro Morais Sarmento anunciar a demissão da Administração do INE).
Quanto à saúde, tenho que confessar que não percebo nada de medicina e muito menos de patologia. Isto porque só um país que sofra de um masoquismo patológico pode dar-se ao luxo de fazer o que nós fizemos. Andamos há mais de 20 anos no jogo do empurra, numa espécie de manifestação de esquizofrenia colectiva, em que há muito se deixou de perceber ou o para quê e em que cada um tenta manter o seu pequeno espaço desimpedido, entre médicos revanchistas e plutómanos, políticos e burocratas que alegremente saltitam de empresas privadas ligadas à saúde para cargos públicos ligados à saúde, assobiando descontraidamente, escudados numa cidadania cada vez mais indiferente e sedada, claro.
Já na educação as coisas são diversas. Não se trata de uma manifestação, mas de um verdadeiro desfile de non-sense. Tome-se por exemplo a paixão do Eng.º Guterres. Qual homem de negócios de meia-idade que se enternece ao ver a miúda que vende maçãs na rua e a leva para casa, o Primeiro-Ministro rapidamente perdeu a vontade de a transformar numa dama de sociedade. No fundo, aconteceu-lhe o que acontece a muitos casamentos: afinal ele tem mais barriga do que parecia, uma fixação doentia no Benfica e poucos hábitos de higiene. Ou, na outra perspectiva, ela não sabe cozinhar, passa a vida a ver novelas e aumentou 10 quilos (nos sítios errados). Felizmente o Eng.º Guterres é um homem de princípios, católico progressista e instruiu a governanta no sentido de ver o que podia fazer pela menina e foi tratar de outros negócios. Mas o mal não começou no ex-Primeiro-Ministro. Perante a óbvia diferença entre os nossos desempenhos e os de outros países europeus tínhamos duas soluções: a primeira era investirmos seriamente na educação. A segunda era baixar os níveis de exigência. Não restam dúvidas sobre a escolha. Nem sobre os resultados.
Mas não desespere o leitor! Se nestes campos os resultados estão longe de serem satisfatórios, os progressos conseguidos na habitação superam todas as expectativas!
Desde o tempo do "J.Pimenta" que a "coisa" nunca mais parou. Construímos, construímos e continuamos a construir. Perguntará o leitor mais atento: mas a população portuguesa aumentou assim tanto, nos últimos 40 anos? Eu respondo: isso não interessa nada. Se construirmos tudo o que está previsto nos planos directores municipais por esse país fora, podemos albergar populações de cidades inteiras da Ucrânia! O leitor quer prova mais irrefutável do nosso desenvolvimento que o endividamento compulsivo das famílias portuguesas, para a aquisição de casa "própria"? O facto de as grandes áreas urbanas do nosso país serem gigantescas erupções cutâneas, espécie de sarna e de o centro das cidades estar vazio é apenas uma externalidade negativa.
Usando a já clássica figura do extraterrestre que chega à Terra, eu diria que se viesse a Portugal e estudasse um pouco da nossa História, ficaria com a sensação que um dj psicótico pegou no slogan "Pão, saúde, educação e habitação" e que usando a técnica do "scratching", passou os últimos 25 anos a repetir "habitação, habitação, ha-bi-ta-ção!" e que nós, iletrados e sedados, dançamos mansamente, numa triste matiné de Domingo para a terceira-idade, contentes com o lanchinho remediado que nos dão, depois de uma curta e atribulada noite de Sábado, de incomedida loucura.
Nunca mais chega Segunda-feira.




Publicado no Triângulo n.º 29, de 14 de Outubro de 2003




























CONVERSAS DE CAFÉ


Uma das características mais marcantes do português é a sua inesgotável capacidade para falar do que não sabe, do que não estudou, do que simplesmente não conhece.

Quando isso acontece num grupo de amigos, nos balneários depois de uma jogatana de futebol, no cabeleireiro, entre uma mise e uma limpeza de pele ou no café, entre uma imperial e uns tremoços, é perfeitamente inofensivo.

Já não posso afirmar o mesmo quando a tagarelice se verifica em sítios onde era suposto discutir-se de forma séria, até porque se está a representar os eleitores que nos elegeram.

Vem toda esta conversa moralista a propósito das inevitáveis discussões que surgem cada vez que o Governo (seja ele qual for) tenta impor uma taxa, um imposto ou uma propina. Seja na Educação, na Saúde ou nos Transportes.

É então hábito ouvirmos os mais doutos discorrerem sobre o que é a educação, sobre o que é a saúde, sobre o que é a habitação, etc.. E normalmente o que começa como um pequeno exercício de retórica acaba como uma dose de verborreia. São conhecidos os casos de pessoas que não sabendo absolutamente nada do assunto em discussão, conseguem falar palrar sobre o mesmo durante horas, desde que haja uma câmara de televisão, um gravador audio ou um jornalista por perto, claro.

Ora, estar a discutir esses assuntos sem abordar a questão de base e que lhes subjaz é o mesmo que eu discutir com a minha namorada se o nosso filho vai ter uma educação católica, apostólica e romana, quando nem sequer ainda fiz uma tentativa séria para o ter.

Quero dizer com isto que a questão básica, a questão que tem que ser posta antes de todas as outras, antes de se discutir o que é a educação e como é que se a financia, ou o que é a saúde e como é que a devemos pagar, é: o que é o Estado? Para que serve? Como é que funciona?

Ora o Estado somos todos nós e manifesta-se nos órgãos constitucionalmente previstos, serve para que quem nasceu no Bairro 6 de Maio tenha, pelo menos à partida, as mesmas hipóteses de viver condignamente, como quem nasceu na Quinta da Marinha e funciona pelo contributo dos mais afortunados em prol dos menos, através de um monstro da Fábula que certamente por não existirem empresas de marketing na altura, se deu o nome de impostos.

Se alguém conhecer outro modelo de Estado e Sociedade, que se manifeste. Eu não conheço e tenho a humildade de não procurar um outro modelo quando este está longe de funcionar bem e deve por isso ser aprofundado.

Enquanto não existir em Portugal um verdadeiro Fisco (outra palavra repelente) que consiga aferir com justiça o rendimento de cada um e que possua mecanismos eficientes para cobrar a parte proporcional desse rendimento para manter o conceito de Sociedade vivo e a fazer sentido, todas as outras discussões são inconsequentes, inúteis e idiotas.

Não passam de exercícios de onanismo, que servem de falso fundamento aos governos para, de forma cínica e imoral, irem mantendo a ideia de que governam.

E não há nada de mais injusto que aplicar a igualdade ao que é desigual. Sejam taxas, impostos ou propinas. Ou o preço dos rebuçados.




Publicado no Triângulo n.º 30, de 28 de Outubro de 2003




































CONVERSAS COM PÉS E CABEÇA

Não sei se
Compro um
Husky ou
Um Terrier
Vemde-se muradia com terreno, ótimo presso. O que isto precisava era de um Salazar.
Antigamente é que a malta saía rijos, agora morre-se mais cedo. Do que o Benfica precisa é de um patrão no meio-campo. Alguém me explica o que é que fazem aqueles pretos todos no Rossio? Se eu mandasse nesta merda mandava era fazer mais prisões, para prender esses drogados todos. No meu tempo é que a malta apremdia hálguma coiza na escola. Os putos agora saeim de lá çem saber lere nem escrevere. Enquanto não acabarem com essa coisa do rendimento mínimo garantido este país não anda prá frente. Anda por aí muito calão que não quer é fazer nenhum. Não me venham com tretas: Mulher que se pinta é puta. O mal deste país é que já não há respeito e a polícia não malha log o. Acabem com a tropa e vão ver onde é que isto vai parar. Soprar no balão? A mim não me mandam soprar no balão. O meu patrão é que é esperto: declara que ganha o ordenado mínimo. Àquele é que ninguém lhe faz a folha. Se a minha mulher não fosse tão desconfiada, gostava de dar uma voltinha com a minha vizinha do terceiro esquerdo. Já não suporto os 87 quilos do meu marido, perfumados de whiskie e nicotina. Santas televisões que prolongam as telenovelas até tão tarde. Ando cheia de sono, mas mais feliz. Quanto mais conheço as pessoas, mais gosto do comando à distância.
Vou fazer mais umas horinhas para ver
Se consigo comprar o tal jipe. O meu
Patrão gostava de me deitar a unha. Ele
Que se contente com a pita da secretária.
Mas o que é que os políticos fazem ao
Dinheiro da gente? A espanholada está
A invadir isto, queres o quê filho? Uma sandes?
Toma lá um bollycao e já vais com sorte.




Publicado no Triângulo n.º 32, de 25 de Novembro de 2003














































O ÊXTASE NA CAIXA DE CORREIO

Caros leitores,


Hoje estou particularmente satisfeito. Contrariando a onda de pessimismo que se abateu sobre o País, por causa do PIB (essa criatura bizarra e imensurável) do Pacto, do PEC, da PQOP, diria mesmo que hoje estou radiante.

Tudo porque ao abrir a minha caixa de correio, normalmente cheia de facturas, vislumbrei uma carta do Serviço Local de Finanças. Trémulo, quase febril, apalpei o seu conteúdo, como quem sente pela primeira vez os contornos de um corpo há muito desejado. As minhas mais secretas esperanças confirmaram-se quando desfiz o invólucro: era o meu novo cartão de contribuinte! Johann Strauss entrou subitamente no meu prédio, seguido de uma pequena orquestra; os candelabros acenderam-se. A música invadiu aquele pequeno átrio, em crescendo. Deus existe e apresenta-se em tons de verde. Quase três anos depois de o ter pedido, eis que o pequeno gnomo, que imediatamente baptizei como Manelito, chegava-me às mãos.

Subi as escadas com o Manelito nas mãos, sentindo os meus sinais vitais a voltarem ao normal. Pousei-o na minha secretária e resolvi fazer o que qualquer homem decente faria. Peguei no velho e carcomido cartão de contribuinte e preparei-me para as suas exéquias. Eu sei que os meus leitores vão pensar que sou um sentimental, mas a verdade é que costumo sepultar com pompa e circunstância de Estado todos os meus cartões. Embrulho numa folha de papel de 25 linhas azul, claro, cada um dos que deixam de estar em vigor ou caducaram. Com um esmero digno de funcionário público, tenho uma velha gaveta carunchosa, que serve de Cemitério. Tudo organizado por talhões. Lá está o talhão da ADSE, com 27 inumações; o talhão da Segurança Social, com 12; o da DGV, onde repousa a minha antiga carta de condução, e assim por diante. E no fundo da gaveta, ergue-se, altivo, um velho carimbo preto e sóbrio, ostentando a inscrição INDEFERIDO com orgulho e garbo.

O Manelito passou a andar comigo 24 horas por dia. Tenho-o mostrado a todos os amigos, que o olham com inveja. Gostaria de frisar que são entes como o Manelito que alteram a nossa mundividência de forma imperceptível mas decisiva. Eu já decidi que vou permanecer celibatário ou pelos menos se casar não vou alterar o nome, só para não perder o meu novo amigo. Nem vou mudar de casa. Hei-de ficar nesta até que as paredes caiam, que o tecto desabe e mesmo aí, morrerei de pé, como todo o contribuinte recto.

Se os meus leitores pensam que tudo o que escrevi até agora foi uma gorada tentativa de ironia desenganem-se. Até o subdesenvolvimento tem as suas cores alegres. Se eu vivesse num País com um verdadeiro Estado, em que alterar os meus dados fiscais ou civis fosse um acto simples e de efeitos imediatos, estes pequenos momentos em que simulamos que somos civilizados não existiriam. E perante isto nós só temos duas opções: o atentado frio, seco e certeiro ou a esquizofrenia. Profundas convicções humanistas e anti-belicistas levam-me a escolher a esquizofrenia. Por enquanto.


Publicado no Triângulo n.º 33, de 16 de Dezembro de 2003

SUBLOCAÇÃO

Oi! Meu nomi éi Odércio Ipitarangui i pedji ao Sôr Nuno, habituau escriba deista coluna prá mi deixá botá umas linha.
Tchive essa ideia porrqui tô morando aqui i já riparei qui ócês, portugas, taum sempri dji baixo astrau e alguns ficam meismo incomodados quando percebem qui tudo quando é loja de shoppingue tá cheia dji nóis. Aconticeu o mêsmo cum a gentchi há uns anos atráis, quando todas as padaria do Brasiu ficaram cheias de portugas.
Ócês, qui nãum saum birutas dji todo, já devem tê riparado qui à gentji num é só futebolista ou garota dji programa. É.
I tambeim já devem ter riarado qui a gentchi fala portuguêis. Um portuguêis meio gingão, como ócês djizem. E concerteza qui já perrceberam qui nóis somos muitjos, né? Somos 175 milhão, prá ser exacto.
Ora, meismo com toda a probreza i todo o subidisenvolvimento, alguns de nóis tinha qui sair sujeito isperto. Qui creschi pensando em portuguêis, fala portuguêis, si manifesta em portuguêis. Ocês já tchinham dado por isso, não?
Pôr exemplo, o Jorge Amado, qui foi aqueli cara qui deu vida à Gabriela Cravo e Canela, qui já foi vista por russo, chinês i tá chegando até na Polinésia. Ou outro cara qui dji cerrteza já ouviram falá: o Santos Dumont. Ou esse brasuca danado prá brincá dji nomi Carlos Drummond de Andrade. Num há actchividadji no mundo em qui naum esteija um brasileiro mitchido.
Lá nusz States já deram por isso i taum procurando arranjá increnca prá gentchi. Mas num fais máu. O Samba contchinua passando e vai passá cada veis mais. À cultura brasileira é, si naum a única, pelo menos a qui tá dando mais luta à hegemonia do inglês e da cultura anglo-saxónica. E tá botando prá quebrá. Ein portuguêis.
Compreende?
Ora ócês, qui taum sempri si lamentando qui o portuguêis tá disaparicendo, teiem qui pôr essas cuca a funcioná. Si o portuguêis naum disaparecê si vai devê a nóis. Qui somos muitos e fazemos um tremendo barulho. Deixa dji sê bicho careta e aproveita à festa, cara, em veis de ficá no seu canto choramingando. A gentchi nein si importa dji ouvir esse portuguêis de ocês, meio caipira.

Saravá!

Odércio Ipitarangui,
Funcionário dji lanchonetchi no shopping Colombo
Meia-direita du tchime da Associação Recreativa da Damaia
Tocador dji tambô no Grupo dji Samba Tudo in Cima




Publicado no Triângulo n.º 34, de 6 de Janeiro de 2004






AS ANEDOTAS DO MASCARENHAS (em DVD, CD e Minidisc)


Caros leitores:

Influenciado por essa invasão de contadores de histórias, de stand up comedy, stand down (it's a) tragedy e afins, resolvi publicar as minhas próprias anedotas. O João Marques que me perdoe a publicidade à borla, mas aqui ficam 3 exemplos das anedotas que poderão encontrar no 1º volume.


ANEDOTA 1
O Governo Civil

Existe em Portugal uma coisa chamada Governo Civil, com o respectivo Governador. E serve para quê? Para representar o Governo nos Distritos. E os Distritos, são o quê? Evidentemente são as circunscrições territoriais que servem para...bem, servem para terem Governos Civis! De resto não servem para mais nada. Quer dizer, se Portugal fosse um País tipo peixe-espada, como por exemplo, o Chile, ainda se podia compreender. Ou se tivéssemos uma série de ilhas no meio do oceano, vá lá (e nós temos algumas, mas curiosamente nas ilhas não há governo civil). Agora, nós que somos um país minorca, onde se chega de uma ponta à outra em menos de um dia, onde existem telefones, telemóveis, fax, internet, videoconferência, etc., não se percebe muito bem para que é que existem governos civis. Representam o Governo para quê? Para alguma coisa de concreto? Constróem estradas? Aeroportos? Então cada Ministério não têm uma direcção regional? Se eu estiver chateado com o Primeiro-Ministro escrevo-lhe uma carta, mando-lhe um sms. Para que raio quero eu o Governador Civil? Antigamente ainda serviam para alguma coisa. Autorizavam (ou não) o foguetório tradicional sempre que havia festa no distrito. E faziam outra coisa importantíssima: licenciavam as máquinas de diversão electrónicas (tipo Pacman). Quero agradecer a benevolência dos senhores que foram titulares do cargo aqui no distrito de Lisboa, pelo facto de terem licenciado, aos longo da minha juventude inúmeras máquinas, desde o pacman até ao pinball. O que seria da minha juventude sem esse licenciamento! Mas actualmente já nem o foguetório autorizam. Não se faz. Ah! E fazem outra coisa. Emitem passaportes. E devem emiti-los mais rapidamente do que a telepizza nos entrega a encomenda, a julgar, por exemplo, pelo Governo Civil de Beja, conhecida rota internacional, que só para passar passaportes tem 14 funcionários. Mas não quero ser injusto. O Governo Civil tem pelo menos uma grande utilidade nos tempos que correm. É que normalmente estão sediados em edifícios do Estado com valor histórico e cultural e enquanto assim for, vender esse património é capaz de se tornar um bocadinho mais difícil. A menos que alguém se lembre de os enfiar num qualquer contentor.

ANEDOTA 2
A GNR

Outra coisa engraçada que nós temos é a GNR. Desde que a GNR foi criada, o País mudou radicalmente. Tornou-se essencialmente urbano. Parece que toda a gente deu por isso menos quem devia ter dado. Do quase nada surgiram coisas como a Amadora, Rio de Mouro, cidades inteiras nasceram à volta do Porto e de Lisboa. Ora a GNR é uma força militarizada. Militarizada? Mas nós estamos em guerra civil? Será que existe algum grupo separatista no activo e ainda não demos por isso? Já imaginaram um GNR a descer a Avenida Ernest Solvay, na sua montada, atrás de um tipo numa CBR 600, a gritar "O senhor está detido!"? Quando ele finaliza a frase já o tipo vai no IC2. Mas será que o Estado não tem respeito pelos seus próprios agentes? (pergunta de retórica, claro). É verdade que a GNR tem uma magnífica banda de música, mas onde é que se vai arranjar instrumentos para todos os mais de 25.000 agentes?


ANEDOTA 3
A NATO

Quando terminou a 2ª Guerra Mundial e tendo em conta a voracidade desse grande amigo dos oprimidos Josef Estaline, foi criada a Nato. E ainda bem. Senão eu hoje chamar-me-ia Igor Mascarenhenko e não estava aqui a abusar dos doces prazeres da democracia liberal. Só que isso foi há mais de 40 anos. Entretanto caiu o Muro. A União Soviética acabou. O único Bloco de Leste que resta é o da selecção russa de voleibol e acho que é um exagero manter uma aliança militar só para pôr na ordem meia dúzia de atletas, por muito altos e fortes que sejam. Ora se a Nato foi criada para fazer face ao Pacto de Varsóvia e este entretanto desapareceu e a Nato continua, acho que Portugal devia, em nome da seriedade, propor a criação da Nato - AMOCOS (Against Martians and Other Creatures from Outer Space - Contra Marcianos e Outra Bicharada vinda do Espaço), porque é mais provável que sejamos invadidos por marcianos que por soviéticos. E já pensaram no merchandising? Mesmo que tudo não passasse de uma encenação, já imaginaram as naves espaciais em miniatura, tripuladas pelo Capitão Antunes, a defender o Terreiro do Paço da invasão marciana, que seriam vendidas no Natal?

Caros leitores, estes foram alguns exemplos do livro, que pela sucessão de anedotas neste país e neste mundo, promete vir a ter um 2º volume. Com dois tomos, no mínimo.




Publicado no Triângulo n.º 36, de 3 de Fevereiro de 2004
















O MARAVILHOSO MUNDO LIBERAL


Numa altura em que cada vez mais se fala na fraca qualidade do nosso ensino, venho propor aos meus leitores um pequeno exercício de economia:

"Imagine o leitor, o Sr. Ambrósio e o Sr. Baltasar, ambos empresários de camionagem. Imagine que por cada frete que fazem, ou encomenda, ou serviço, para o caso é indiferente, têm um lucro bruto de 100. Deduzidas as despesas, o lucro reduz-se a 30. No entanto o Sr. Baltasar é um tipo conscencioso e incorpora nas despesas o parque automóvel onde estaciona a sua frota, reduzindo o seu lucro a 20. Já o Sr. Ambrósio, na melhor tradição portuguesa, externaliza esse custo. Quer dizer, em vez de assumir os custos inerentes à sua actividade empresarial, estaciona os seus camiões tir mesmo no centro da cidade onde mora, que por acaso é na Póvoa de Santa Iria. Consegue com isso comprar um camião novo a cada 20 fretes. O Sr. Baltasar precisa de 30 fretes para comprar o seu camião e o seu lucro vai-se reduzindo cada vez mais porque insiste em cumprir escrupulosamente as regras. A princípio os vizinhos do Sr. Ambrósio ficaram um pouco chateados com o incómodo que os camiões tir provocavam numa zona densamente povoada, como por exemplo, a Quinta da Piedade, mas o perspicaz empresário logo se apressou a esclarecer que deste modo o preço final dos bens que ele transportava era mais baixo e que assim ganhavam todos. Além de aplaudirem o Sr. Ambrósio, elegeram-no administrador do condomínio. Graças à sua visão empresarial, todos podiam comprar telemóveis mais baratos, playstations para o pai, para o filho, sem recorrerem ao espírito santo, máquinas fotográficas digitais, portáteis, enfim, tudo o que tivesse botões. Tal actividade económica provocou uma verdadeira onde de optimismo e todos nós sabemos o efeito das ondas de optimismo nas taxas de natalidade...que o diga o Sr. Cardoso, condómino do mesmo prédio do Sr. Ambrósio, que de um momento para o outro se viu com mais um rebento no seu agregado familiar. Apesar de gostar bastante da vizinhança, resolveu mudar de casa e colocou a sua no mercado, pedindo a razoável quantia de 1000. Consultou então o Sr. Dário, perito na matéria que lhe fez as seguintes observações: falta de estacionamento, menos 50; ruídos nocturnos provocados pelos camiões, menos 30; passeios e zonas verdes estragados pelos camiões, menos 20; falta de visibilidade e dificuldade de circulação por causa do estacionamento dos camiões, menos 50. Resultado: o seu imóvel afinal só valia 850. Decidido a mudar de casa, o Sr. Cardoso vendeu as palystations, as máquinas digitais e os telemóveis, mas mesmo assim ainda lhe faltavam 600 para cobrir o custo da nova casa, que era 1500. Não desesperou. Vendeu o carro. Tornou-se vegetariano. Cortou até a televisão por cabo. E, fazendo uns biscates, lá conseguiu comprar a sua nova casa. Está mais magro porque para poupar no passe vem todos os dias a pé do Casal da Serra à estação de comboios. Lê os jornais dos outros nos transportes, desenvolvendo uma apurada técnica de camaleão. Fuma o seu cigarro até ao filtro. Fuma o filtro também. Aliás, fuma tudo o que apanha a jeito. E a casa nova é de facto espaçosa, até porque o Sr. Cardoso não tem dinheiro para pôr nada lá dentro.
Quanto ao Sr. Ambrósio, há muito que se mudou para a sua quinta, discretamente escondida algures entre o Sobral e Arruda, para onde regularmente convida amigos e compinchas, que desfrutam da magnífica piscina, enquanto no braseiro belas peças da melhor carne se tornam ainda mais belas comezainas. Como ele costuma dizer, enquanto o Sol lhe bate no corpo anafado e luzidio: "Isto é que é qualidade de vida, sem poluição. Um gajo aqui até rejuvenesce." Mas, como homem agradecido que é, de vez em quando visita os seus amigos da Quinta da Piedade, teseus presos no labirinto de onde só o minotauro sai."

Publicado no Triângulo n.º 41, de 13 de Abril de 2004
















































Ú PAIZE DUS DOTORES

Certamente que alguns se lembram ainda daquele belo País que o Dr. Salazar criou ou pelo menos manteve, feito de almas caridosas e analfabetas, desenhando, cândidas, o seu nome de baptismo.

Hoje, verifica-se, pelo contrário, um fenómeno espantoso. Os meios académicos, antes coutada de uns quantos, estão enxameados de doutores. Tornou-se quase habitual ouvir que o fulano tal se doutorou aos 30 anos e toda a gente acha normal que alguém obtenha um doutoramento aos 30 anos.

Um doutoramento significa que quem obtém esse grau académico está não só "habilitado" a produzir matéria relevante na sua área de estudo, como essa matéria constitui uma base credível de trabalho para outros estudos.

Quando isto se passa no âmbito das ditas ciências experimentais ou das ciências "exactas", eu ainda aceito que alguém com 30 anos consiga preencher essas condições, porque é possível estudar essas matérias em abstracção do mundo "real". Dois mais dois são quatro, sempre assim foi e sempre assim será, pelo que não me parece particularmente inverosímil que se produza "doutrina" nessa idade.

Já me parece completamente absurdo que o mesmo aconteça, como regra tendencial, nas ciências sociais. Isto não significa que seja de todo impossível alguém doutorar-se numa ciência social aos 30 anos. Só que essa categoria de indivíduos chama-se génio e não surge um a cada esquina. Ora, em Portugal depara-se cada vez mais com um doutor em cada esquina.

Isto é absurdo. Primeiro porque nas ciências sociais não é possível ao investigador fechar-se num laboratório e analisar as reacções das pessoas em sociedade. O laboratório é a própria realidade e portanto o factor experiência é decisivo. Manifestamente ninguém pode ser muito experiente aos 30 anos, por mais metódico e inteligente que seja. Segundo, porque em ser investigador em Portugal implica um esforço adicional, que é o de aprender pelo menos mais uma língua, já que a literatura científica em português é escassa. No exemplo que eu conheço melhor (que é o Direito) é pelo menos necessário saber alemão, italiano e castelhano se quisermos ser cientistas de direito credíveis. Não estou obviamente a falar do espanhol de futebolista recém-chegado ao pais de nuestros hermanos. Isto implica um esforço adicional, ou seja é necessário gastar tempo a dominar um meio antes de se poder compreender a matéria. Terceiro porque continuamos a ser um dos países mais atrasados em termos académicos e não é habitual vermos os pais a discutirem com os filhos, logo não existe a tradição do interesse prematura na ciência, ou pelo menos esse interesse não é comum.

Por tudo isto espanta-me esta recente erupção de doutoramentos e julgo estarmos perante um logro que mais tarde vamos pagar caro.

Um logro porque a elevação do nível académico de um país não se consegue numa década e muito menos num país estruturalmente avesso à mudança.

Somos um país de doutores...da mula ruça.




Publicado no Triângulo n.º 47, de 6 de Julho de 2004












































PRIMUS INTER PARES


O assunto que hoje abordo, viola, aparentemente, um princípio que estabeleci, pelo menos, desde a minha terceira crónica no "Triângulo": o de escrever textos que reflictam aquilo que eu e só eu penso sobre o que me rodeia. Decorre isto de dois factos. Primeiro porque o compromisso que tenho com o João Marques e a restante equipa do jornal é o de escrever o que o Nuno Augusto pensa e segundo porque embora militante de um partido, no caso o Partido Socialista, não tenho qualquer mandato para ser porta-voz do mesmo, nem este espaço que me concedem foi vinculado a esse fim, como é óbvio. Entendo que só aparentemente o assunto tem conotações partidárias porque o Dr. Mário Soares é, com o devido respeito, uma personalidade que ultrapassa as pequenas e comezinhas querelas partidárias e é o melhor exemplo que conheço do que deve ser um político.

Goste-se ou não do Dr. Mário Soares, ele é objectivamente o político mais importante da democracia portuguesa e mesmo durante o regime anterior, sem espessura sequer para lhe chamarmos fascista, foi dos mais activos "subversivos" da área não comunista, em conjunto com alguns católicos progressistas e com a ala liberal. Assumiu, sem qualquer experiência de governo e numa situação de caos mais ou menos festivo, a concretização da democracia portuguesa. Percebeu de imediato o caminho e enquanto alguns se movimentavam aleatoriamente, o Dr. Mário Soares foi bater à porta da Europa e não deixou que a fechassem. Enfrentou situações que fazem com que o défice de que hoje se fala pareça um mero exercício risível para alunos do primeiro ano do curso de economia. Assinou a entrada de Portugal na CEE, conseguiu que o Partido Comunista Português o apoiasse na candidatura a Presidente da República, o que constituiu um acto contra-natura e suicida. Foi um Presidente exemplar e reforçou em muito a consistência e a razão de ser do nosso sistema semi-presidencial. Hoje, aos 79 anos é o político mais lúcido que conheço, o mais atento ao Mundo e o mais inteligente, capaz de perceber rapidamente as mudanças que estão a acontecer, contrastando com outras figuras candidatas a políticos, meros fatos aprumados pelas regras do marketing, efémeros e inconsequentes.

É óbvio que o seu caminho não está isento de erros ou de críticas. Julgo ter o decoro e o senso para não pretender transformar este texto numa ode ao Dr. Mário Soares, por respeito ao mesmo.

Aquilo que me parece importante é reflectirmos sobre o que é a política e o que são os políticos, num tempo em que a crítica aos mesmos é permanente, em que o cidadão se abstêm de exercer os direitos e os deveres que o caracterizam como cidadão.

Essa reflexão passa, no meu entender pelo que tem sido o exercício da cidadania do Dr. Mário Soares, verdadeiro primus inter pares de uma geração de políticos que (ao contrário dele) cresceram na melhor criação da Europa e da sua civilização: o Estado Social de Direito.

Passa por percebermos que mais à esquerda ou mais à direita, políticos como Mário Soares, Mitterrand, Delors, Gonzales, Willy Brandt ou Palme tinham um projecto de sociedade, uma visão do Mundo, uma mundividência e que conseguiram agregar nesse projecto, se não a totalidade, pelo menos a maioria dos seus concidadãos.

Todas as gerações têm homens excelentes, medíocres e maus. O excelente incita-se com aplausos serenos; o mau combate-se com tenacidade; mas perante o medíocre tendemos à resignação, deixamos que nos embale num torpor mais ou menos confortável.

Hoje os medíocres tomaram o poder e a História demonstra-nos que isso é uma porta aberta para que os maus espreitem e se preparem para entrar.

Não podemos confundir o simulacro, por muito bem concebido que esteja, com o verdadeiro e temos que ser exigentes nos políticos que escolhemos. Não acredito que ninguém sério e reflectido esteja "farto dos políticos". As pessoas estão hoje "fartas" da falta de qualidade dos aprendizes de feiticeiro que chegaram ao Poder sem referências, sem história, nem passado e sobretudo com a arrogância disfarçada numa polidez de trato cínica, num pragmatismo baseado na incultura generalizada e não modus operandi resultante de uma análise crítica da realidade.

Por isso, se queremos preservar o tal Estado Social de Direito que nos dá tantos direitos, inclusivamente o direito de não exercício de alguns deles, temos pelo menos o dever de zelar pela sua "saúde".

E isso passa também pela escolha criteriosa e consciente dos nossos políticos, que sendo "vendidos" como se de um produto de hipermercado se tratassem, não são.

Ou pelo menos não deviam ser.


Publicado no Triângulo n.º 48, de 20 de Julho de 2004
























WHO THE HELL IS MICHAEL PORTER?

Há uns bons anos vivíamos sob a aura neo-keynesiana (ma non troppo) do Prof. Aníbal. O então Primeiro-Ministro, preocupado com o futuro do país, terá encomendado ao guru Michael Porter um estudo para se perceber o que é que nós poderíamos fazer a este excêntrico rectângulo à beira-mar plantado.
Não ponho em causa o brilhantismo de Porter, mas não há dúvida que a análise do homem falhou por completo. O nosso futuro não passa por "clusters", nem por cornflakes ou cheerios.
Nós somos bons é a fazer festas. Não daquelas festas formais, com champagne e caviar, até porque convenhamos que só um arrivista bebe champagne e mordisca caviar. O champagne tem muito gás e o caviar sabe a peixe cru.
Porter não podia perceber, porque não é português nem nunca viveu em Portugal qual é o nosso estado de alma. E como não percebeu, mandou-nos ir à pesca, ou à praia, mas como é uma pessoa bem formada, chamou-lhe turismo.
Não podia perceber, por exemplo, que o grande drama dos subúrbios não é propriamente o conhecimento detalhado dos hábitos mais íntimos do vizinho e vice-versa, mas termos acabado com essa pérola nacional que é o Quintal. Eu sei do que é que estou a falar, porque fui criado num quintal. Fiz 27 campeonatos de futebol, uns jogos olímpicos, tiro ao alvo, brinquei com o cão do meu avô e fui picado por um cuco, no cimo de uma árvore.
Se continuássemos a ter quintais, hoje, em vez de homens de meia-idade, trôpegos, em frente à TV, fartos de fantasiarem jantares românticos com a Serenella Andrade, teríamos "engenhocas" nos fundos do quintal, a criarem coisas que depois os empresários suiços e holandeses aproveitariam.
Porter não podia perceber, por exemplo, que nós somos maus em organização, mas que um português com um garrafão de tinto e umas febras pode fazer mais que o mais hábil e experiente diplomata, num qualquer conflito internacional.
Se em vez de passarem o seu tempo a observar, com o olhar pacóvio que nos caracteriza, as manobras da Nato, reparassem no país que, no fundo somos, os estrategas portugueses certamente que substituiriam uma força de intervenção rápida, que não serve para nada, utilizando armas e logística que só conheceram na foto para o álbum de recordações do Ministério da Defesa (agora Nacional), por uma Força de Confraternização Rápida. Em vez de night vision ou granadas, devíamos ter um Kit Portuga, com o "tamparuere" com as febras e as rodelas de chouriço e o garrafão de tinto e o palito, claro. Tivessem mandado mil homens para os arredores de Bagdad, daqueles com o bigode farto e a unha do dedo mindinho comprida, escarrapachados nas areias do deserto, assando os seus petiscos e jogando um dominó ou uma sueca e não vos dava uma semana para que o mais fanático xiita estivesse em amena cavaqueira com a malta, a tentar perceber as histórias que se contam entre um copito de tinto e um valente arroto.
Lamento pois, Sr. Porter, dizer-lhe que nós não precisamos de clusters. Precisamos é de quintais, de um país cheio de quintais e de festas, de paródias, de jogatanas de bola. Façam-se Universidades de Praia, Politécnicos do Desenrasque, Doutoramentos em Esperteza Saloia.
Garanto-lhe que em vinte anos acabamos com qualquer conflito local ou regional. Ninguém consegue ficar indiferente por muito tempo na presença dessa criatura desconcertante, burilada ao longo de novecentos anos, o Português.



Publicado no Triângulo n.º 50, de 31 de Agosto de 2004















































RAZÃO MÍNIMA GARANTIDA


Há uns anos foi instituído o Rendimento Mínimo Garantido. Num país onde muita gente não tem nada garantido, isto é, assegurado para lá de qualquer acontecimento, não deixa de ser espantoso a celeuma que o mesmo levantou em certas elites, pese embora a aceitação generalizada ou pelo menos maioritária.

É um traço marcante da sociedade portuguesa: a aceitação obediente e mansa das hierarquias sociais, mesmo quando injustas ou injustificáveis, convivendo com uma mesquinhez abjecta. Aceitamos com "naturalidade" que o filho do "empresário", com um historial de incumprimento social vasto, sacralizamos mesmo esse comportamento, mas somos intransigentes com o vizinho do lado, se por acaso este sobe nem que seja um degrau na sua vida. Denunciamos mais depressa o tipo que tem um biscate que o tipo que explora mão-de-obra barata e ilegal. Vociferamos com o fura-vidas que se recebe o rendimento mínimo garantido, mas aplaudimos o "patrão" que ciclicamente leva as suas empresas à falência, para logo renascer 20 metros ao lado.

Este "espírito de resignação" a uma suposta "natureza das coisas" faz com que consideremos que o tipo que não paga impostos, que mantém o filho na Universidade à borla e que adquire propriedades com a ajuda do Estado é "esperto". Pertence a uma outra estirpe social. Safa-se. Serve de modelo.

O tipo que arranja um biscate de fim-de-semana é um energúmeno. Se compra um automóvel melhor que o nosso, ficamos alerta, comentamos amargamente com os amigos e conhecidos que "ali há gato...". Se compra uma casa nova, ficamos esclarecidos. Anda concerteza metido num negócio escuro...

O trágico deste traço é que ele não se altera por decreto e duvido que se altere com campanhas. Está profundamente enraizado. Dentro de cada um de nós continua a existir um gene feudal, que repele instintivamente qualquer tentativa de construir uma sociedade verdadeiramente democrática e justa.




Publicado no Triângulo n.º 50, de 23 de Novembro de 2004





























































O PAÍS DOS COMPETENTES



Sempre que alguém é nomeado para um cargo político ou para um alto cargo na Administração Pública (o que em Portugal vai dar ao mesmo), o "apparatchik" situacionista reverbera a mesma frase, com ar sério e grave "É competente.".

Em 30 anos de milhares de nomeações de "competentes" o resultado não deixa de ser pobre. Claro que existe "o sistema", "a máquina" ou "o monstro". Como existe o Papão.

Onde é que fica a responsabilidade dos competentes?

Verificar o percurso de alguns "competentes" da nossa praça seria um interessante trabalho de investigação jornalística. Porque se é verdade que num sistema democrático a principal responsabilidade é simultaneamente de eleitores e eleitos, também não é menos verdade que a utilização e afectação de meios é da competência dos gestores públicos.

Não deixa de ser espantoso que alguém que ontem estava numa qualquer Direcção-Geral (da Agricultura, por exemplo), hoje esteja num Instituto sob tutela do Ministério da Cultura e amanhã apareça numa empresa pública ligada ao sector energético. Alguém acredita que se possa ser competente e conhecedor de Florestas, Museus e Mercados Petrolíferos?

Estou convencido que, observado à lupa, o percurso de alguns desses competentes revelaria um rasto de gestão ruinosa, de emprego para os amigalhaços, de aquisições desastrosas, de opções idiotas, num "cocktail" com um travo obscuro, algures entre o favorecimento pessoal e a corrupção.

Para além dos óbvios efeitos perversos, este estado de coisas conduz a que se rotulem os gestores públicos com adjectivos pouco recomendáveis, o que é injusto para muitos deles.

O político está, pelo menos formalmente, sujeito ao controlo democrático. O actual sistema de nomeação de gestores públicos não. E cria uma classe de intocáveis, que funciona como um corpo, que se vai perpetuando no poder. Quase sempre longe dos holofotes.

Naquele que é certamente um dos países do mundo com mais gestores competentes por metro quadrado, não deixa de ser estranho que o resultado final seja um país de manifestas incompetências a cada canto.




Publicado no Triângulo n.º 57, de 14 de Dezembro de 2004





























































OUTROS TEXTOS













































































A SERPENTE ADORMECIDA


Durante mais de 10 anos, vários especialistas em urbanismo e ordenamento do território compilaram e sistematizaram dados e formularam propostas sobre a Área Metropolitana de Lisboa.

Nesse trabalho, formalizado no PROT-AML (Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa), os autores desenharam sobre o mapa da área, um par de cornos a negro (desculpem a linguagem, mas sou ribatejano de alma), a partir da cabeça-Lisboa. Um desses cornos é precisamente o eixo Sacavém-Vila Franca de Xira.

Com todo o respeito, basta entrar no IC2, vindo de Lisboa, para qualquer pessoa perceber empiricamente, aquilo que, cientificamente fundamentado, é dito no PROT.

Ao darmos a primeira curva do IC2, deparamo-nos com essa gigantesca serpente adormecida à beira-rio, recostada no monte, em constante regurgitação, espécie de animal da Fábula, monstro que nem para dissimular os seus próprios dejectos se agita.

E, no seu interior, laboriosos gnomos procuram minimizar os estragos que a mais ínfima função fisiológica da criatura provocam, enquanto diabretes trocistas se divertem a alimentá-la, transportando muitas mais guloseimas do que as que supostamente caberiam nos seus pequenos bolsos, engordando-a.

Nos momentos de maior desespero, prostrado por mais um vómito do bicho, que depressa se torna parte do seu corpo em expansão, utilizo um subterfúgio subvertido para manter a esperança.

Imagino que um qualquer acontecimento extraordinário levou a uma debandada geral da população serpentícola, imagino que Portugal ganhou o Europeu de Futebol e que 9 milhões se engalfinham à volta do Santuário de Fátima, onde se encontra a Selecção Nacional, ou que um ovni amarou na Ericeira, suscitando a curiosidade receosa de milhões, que das falésias aguardam que do disco voador saiam pequenos homens verdes, entre uma sandes de torresmos e um penalti de tinto. Um gigantesco piquenicão da Ericeira a Peniche.

E nesse momento, no silêncio desse momento, um forte e preciso terramoto esvaziava a serpente, deixando-a jazendo, oca, à beira-rio.












UMA FAMÍLIA PORTUGUESA

- Não gosto da avó! - Lamentou-se o menino Pedrinho.
- Come só as batatas... - Quase lhe sussurrei, entre o fogo cruzado que se estabelecera na mesa, pedra lançada da funda entre arrufos de torpedeiros.

Os almoços de família eram sempre uma festa. Apesar de estarmos disseminados por diversos cantos da floresta de betão dos arredores de Lisboa, pelo menos uma vez por mês toda a gente se reunia, na casa da Tia Gertrudes. No Verão, até o primo Rogério vinha de Valenciennes, no seu Mercedes de caixa automática.

Somos uma família unida e sólida. De uma forma peculiar alcançámos até um certo estatuto social. Não aparecemos na "Lux" ou na "Caras", mas somos presença constante na "Casa & Decoração" e na "Meubles de Cuisine". Fomos até capa da "Housekeeping".

Longe vão os tempos em que o bisavô Gustavo começou a fazer pernas-de-pau na arrecadação do quintal, depois de convalescer do acidente com o Pepe, o burro espanhol. Fazendo uso da proverbial capacidade lusitana de desenrasque, o bisavô Gustavo, vendo-se perneta, logo mudou o negócio de produção de castanha da família para construção de pernas-de-pau. Hoje somos um conglomerado na área das próteses, os tipos da General Motors vêm comer-nos à mão sempre que querem montar uma nova caixa automática numa dessas caixas de fruta a que chamam veículo utilitário, os melhores 10 assassinos da Yakuza usam polegares postiços feitos na nossa fábrica do Seixal. Não tivesse o bisavô Gustavo, já completamente toldado pelo bagaço que o compadre Julião trouxera da terra, insistido em montar o Pepe, que assistiu, na sua incredulidade de burro, à tentativa certeira do bisavô em montar no burro que não era, aterrando na charrua meia coberta de ervas, que jazia entre outros utensílios que não serviam para nada e o terreno estaria hoje transformado num prédio deslavado, com um nome pomposo, tipo Varandas do Trancão, comprado por um senhor de cabelo ralo e oleoso, acompanhado pela sua esposa gorda, com as pregas do abdómen disfarçadas sob um padrão tigre da malásia made in taiwan.

O bisavô começou por vender as suas pernas-de-pau nas feiras e romarias, com a ajuda da bisavó Natércia, foi conseguindo aquilo a que hoje se chama uma carteira de clientes e passado pouco tempo estabeleceu-se na Rua do Arsenal, entre lojas de ferramentas e de bacalhau. Foi ainda com sede na esconsa e mal iluminada loja que o seu filho, o avô Paulino, conheceu marinheiros de todos os cantos do mundo, aos quais entre conselhos sobre as melhores putas da zona, mostrava os aparelhos que a sua imaginação fervilhante ia criando. Foi assim que o negócio prosperou, através dos marinheiros que de Lisboa levavam as nossas magníficas pernas-de-pau e lancinantes esquentamentos.

Hoje temos uma cadeia de lojas espalhadas por todo o mundo. Abrimos recentemente uma loja em Vladivostok, onde lançámos o nosso modelo Nikita, uma perna-de-pau "high tech", forrada a marta.

O negócio continua no entanto a ser familiar, resistimos serenos, às tentativas de aquisição hostis, ao linguajar de ambulância de pequeninos homens amarelos, desconfiados dos "entonces hombre, somos hermanos, piernas de madera Gaspacho, suena agradable" que ciclicamente nos batem à porta da fábrica do Seixal, à caspa invisível de tipos apátridas, de fato azul escuro e traços secos que falam uma língua esquisita e monocórdica, corcundas dos estudos e estratégias de cordel que carregam debaixo dos braços.

Somos, é certo, um bocado excêntricos. Com a mania de experimentarmos em nós mesmos os produtos, antes de os lançarmos no mercado, decepamos regularmente uma perna ao tio, um dedo ao primo, um braço ao sobrinho, o que a maior parte das vezes se revela um sucesso. O primo Elias, por exemplo, que antes de lhe arrancarmos a mão esquerda, numa tarde de Domingo invernoso, era duro de ouvido, incapaz de trautear "A minha casinha", passou a tocar o "Bhoemian Rapsody" só com o estalar dos dedos, graças à mão cibernética que lhe instalámos, modelo feito de propósito para a NASA. Como achamos um desperdício, nestes tempos de crise, desaproveitar alimentos e temos uma alergia hereditária à carne de porco, guardamos os membros decepados na arca e sempre que a família se reúne, temos iguaria.

Um pequeno desvairo, se quiserem, mas quem não tem pequenos desvairos? Da mesma forma que os bares de alterne se enchem de vendedores e escriturários aos dias 30 de cada mês, para o seu desvairo mensal, a família reúne-se para o seu, muito mais higiénico, diga-se.

Aliás, vendo bem as coisas, a nossa pequena excentricidade nem é particularmente aberrante. Eu, por exemplo, entrei uma vez em casa do Ernesto, meu colega da 4ª classe e para além de ter que me descalçar à entrada, deparei com África na Damaia. Tigres no tapete do chão, elefantes de loiça e de plástico a imitar marfim por todo o lado, sapos, crocodilos, cães, gatos, um rato enorme empalhado, um animal esquisito em cima do sofá, obeso e peludo, ao qual a mãe do Ernesto limpava o pó, que vim a saber mais tarde chamar-se Floriano, pai do Ernesto. E enquanto eu, receoso, me anichava por trás do bengaleiro, a Dona Ermelinda, esposa do animal esquisito e mãe do catraio, perseguia, com ímpetos de marine dopado, o único animal vivo que por breve distracção sua entrara em casa, uma melga minúscula de motor afogado e condenada a morrer espalmada pela raquete de ténis empunhada pela santa senhora.

Isso sim, é excentricidade.


















ULTRA-LEVUR


"A conjuntura apresenta um elevado índice de debilidades sistemáticas induzidas por interaccção de fenómenos exógenos, culminando numa catarse que apresentando sintomas de entropia, não deixa de manifestar um fio condutor que, embora obliterante, tem na sua própria contingência propriedades correctivas e potenciadoras não despiciendas, num quadro de maximização.

Por outro lado a sua própria génese indicia comportamentos periféricos ao óptimo, sendo que através da análise endoscópica nos é permitido concluir pela proliferação de factores de disseminação menos adequados.

Todavia, a imagética estruturante apresenta-se como elemento determinante não só na óptica do observador auto-convexionante mas também daquele que se hetero-parametriza. Pelo que a medição não é instrumento garantido de aferição de resultados."

Eu podia continuar, mas está a tornar-se penoso, pelo menos para mim. A língua portuguesa é de facto uma coisa maravilhosa. Um tipo pode estar horas e horas a falar e não dizer absolutamente nada, parecendo que está a apresentar doutrina. E o mais espectacular é que se o tipo for mesmo bom, ainda lhe pagam.




























DESMILITARIZAÇÃO, JÁ!


Com a queda do anterior regime, foi necessário não só mudar as instituições políticas, como reformar toda a administração pública, que em face da natureza do regime, estava instrumentalizada. Assim, tornou-se evidente que era não só necessário mudar os decisores políticos de topo, como também assegurar que os executores dessas políticas estavam irmanados do mesmo espírito. Ora, os partidos políticos surgiam como as únicas entidades, num regime democrático, com legitimidade para prosseguir esse caminho e assim, a sua intervenção na administração pública era vista como uma intervenção extensiva, na medida em que a função administrativa era uma extensão, digamos grosseiramente, uma aplicação das medidas políticas. Nesse capítulo, o Partido Comunista Português começou por levar vantagem pelo simples facto de ser mais antigo e mais organizado que os outros. Mas convenhamos que a necessidade de educar a administração e de encarrilá-la nas directivas dos partidos era um desejo de todos, mesmo que a solução fosse temporária e tivesse como objectivo evitar o vazio após o saneamento político. Rapidamente os outros partidos (PS, PPD e CDS) sentiram a necessidade de equilibrar a balança e a bem da democracia foram colocando os seus quadros na administração. Estava assim iniciada a guerra fria que tem marcado os últimos 29 anos da administração pública portuguesa. Não se julgue que ela se limita aos partidos que constituem o dito "centrão" (PS e PPD). Na realidade, todos souberam arranjar nichos para os seus. Há medida que o Estado Providência ia crescendo, menor ia sendo o efectivo controlo das cúpulas partidárias sobre os movimentos das tropas e o objectivo primário, que supostamente seria o de substituir os quadros saneados por quadros ideológica e politicamente esclarecidos. A sucessiva criação de institutos, direcções gerais, empresas públicas e afins perverteu por completo o objectivo inicial. E a necessidade fez com que os critérios fossem menos rigorosos e os centros de decisão esbateram-se. A entrada de Portugal na CEE foi um momento enternecedor de demonstração pavloviana de reflexos condicionados. E nenhum Governo conseguiu dar um passo efectivo para contrariar este fluxo. Em 29 de democracia foram poucos os anos em que a AP conseguiu efectivamente administrar, porque cada vez que mudava um Governo, mudavam milhares de titulares de cargos de topo da administração. Veja-se este exemplo, só aplicável aos últimos 16 anos de governação: de quatro em quatro anos mudava o Governo, traduzindo-se em termos de administração na seguinte fórmula: o primeiro ano é para colocar os quadros, o segundo ano para impor a sua própria estratégia, no terceiro ano vigora essa estratégia e o quarto ano é de expectativa. Assim, e numa hipótese optimista, em cada quatro anos a administração só funcionou um, ou seja, em 29 anos só funcionou 7. Como resultado temos uma administração bem mais instrumentalizada e corporizada que a do Estado Novo. O remédio, de tão forte e de aplicação tão prolongada, deixou o paciente moribundo. É tempo de desmilitarizar a AP. Já!










COCKTAIL


Nos tempos em que este aspirante a cronista bebia com muita frequência e bastante imoderação, tinha algumas regras básicas que seguia, se queria evitar bebedeira certa. Uma delas, "bebida" da dogmática dos consumidores experimentados preceituava que não se deviam fazer misturas.

É por isso que hoje, abstémio militante, olho com desconfiança para esse cocktail explosivo que nos últimos anos se popularizou em certos bares da nossa sociedade, frequentados por clientes em regime de exclusividade.

Para quem ainda não percebeu do que estou a falar (o que parece ser um defeito das minhas crónicas), eu explicito: o cocktail é constituído pela mistura de Câmaras Municipais, construtores civis e clubes de futebol e o seu abuso teve como última ressaca o caso Felgueiras.

Não vou como é óbvio, pronunciar-me sobre o caso em concreto, mas antes tentar perceber o que se pode retirar, "generalizar".

Pus generalizar entre aspas porque objectivamente não posso afirmar que todas as Câmaras Municipais deste País são casos Felgueiras em potência. Não alinho obviamente na tese de que os autarcas são todos feios, porcos e maus. Não são.

Digo, isso sim, que quando se misturam aqueles três ingredientes é meio caminho andado para relações menos transparentes. Afirmo que aquela ideia muitas vezes veiculada nas ditas conversas de café de que os autarcas têm que ser espertos e "saber viver" me causa profunda consternação, porque é um sintoma evidente da falta de cultura democrática de muitos concidadãos, de esperteza saloia, do "salve-se cada um como puder", como se a razão última para vivermos em sociedade não fosse fazermos em conjunto aquilo que não conseguimos sozinhos, mas antes uma condição pré-determinada com a qual vivemos incomodados.

Não basta a existência destas três realidades (autarquia, construção civil e futebol) no mesmo espaço geográfico para que se possa automaticamente dizer: desvio de poder ou corrupção. É no entanto espantoso como certas colectividades de bairro se tornaram em clubes de futebol profissional e como certos trolhas são hoje magnatas do betão.

Por isso acho que para se evitar o clima de suspeição geral, muitas vezes em relação a pessoas que se dedicam altruisticamente à sua comunidade, se deviam investigar seriamente as situações que apresentam fortes indícios de desvio de poder e de corrupção, independentemente da eventual prescrição criminal.

E se me permitem, deixo um modesto conselho, para os destinatários óbvios: se tiver que decidir, não beba.

E sobretudo não faça misturas.


PORQUE É QUE EU NÃO VOTO EM ANTÓNIO GUTERRES


Enquanto o PSD se entretém com o Prof. Cavaco e o DJ de serviço Santana Lopes, o PS mantém-se silencioso, com a desculpa de que "ainda é cedo". Na verdade ninguém quer fazer a pergunta embaraçosa: vai o PS apoiar o Eng.º António Guterres?

Parafraseando o supracitado Prof. Cavaco: eu não tenho dúvidas. E quando não tenho dúvidas é evidentemente mau sinal. Não tenho dúvidas porque tenho memória e lembro-me perfeitamente do Eng.º António Guterres.

O Eng.º António Guterres chegou ao Poder, por mérito próprio, sem dúvida e teve não o pássaro, mas a gaiola toda na mão. Comprometeu-se com milhões de portugueses e fugiu.

Pela primeira vez no regime democrático o Partido Socialista chegou ao Poder sozinho com um Primeiro-Ministro esclarecido e inteligente. E o trágico da situação é isso mesmo. António Guterres é um homem inteligente e esclarecido, não um tecnocrata com meia dúzia de dogmas mal aprendidos.

Percebeu na perfeição os problemas do País ou como se diz agora, fez o diagnóstico correcto da situação.

Percebeu que o País tinha que investir de forma séria na educação e declarou-se apaixonado. A paixão foi fugaz. Guterres deixou-a entregue a meia dúzia de presunçosos incompetentes que se regeram pelo princípio que enuncia: o menino não sabe ler? Não faz mal. Veja os bonecos que nós vamos contratar os melhores ilustradores do mercado.

E sobretudo alimentou os vícios situacionistas instalados. Passou o tempo a almoçar com "lobbies", inspirado pelo ecumenismo da Terceira Via. Foi incapaz de incomodar os interesses que se degladiam na Saúde, na Construção Civil e Obras Públicas, de tornar justo o contributo que cada português dá, através dos impostos. Com o devido respeito, o Primeiro-Ministro mais parecia um qualquer monarca, desfilando pela avenida, sorrindo à esquerda e piscando o olho à direita, sendo recebido no fim por um conjunto de acólitos que entre palmadinhas nas costas e a outra mão discretamente estendida, elogiavam o seu desempenho. Continuou a engordar a máquina do Estado com despudor e incapaz de alterar comportamentos, só com um custo desproporcionado conseguiu melhorar as condições de vida do País. Porque, sejamos objectivos: nem todos os resultados foram maus. Ajudado pela competência e empenho do seu amigo Ferro Rodrigues (que deixou no pântano) conseguiu criar os fundamentos de uma verdadeira Segurança Social, fez um trabalho ímpar em termos de diplomacia em conjunto com Jaime Gama e libertou o País de grande parte das pinceladas latino-americanas coadjuvado pelo eng.º Sócrates.

No entanto, não teve a coragem política para ir ao fulcro da questão. Achou que era possível mudar sem se mexer nos fundamentos da inércia. Cada vez que um qualquer grupelho fazia uma reivindicação, Guterres mandava-os entrar no seu gabinete, de onde saíam saciados. Em seis anos a Administração Pública não passou a funcionar melhor. Pode ter obtido, eventualmente, melhores resultados, mas sempre à custa de injecções dopantes, nunca de uma verdadeira reforma. E o mesmo se passou noutras áreas.
Pergunta-se: mas o que é que isso tem a ver com a Presidência da República? Tem tudo e não tem nada.

Se achar que o Presidente da República desempenha o papel de um pai, que à lareira dá sermões aos seus filhos estouvados e serenamente se vai deitar, vote em António Guterres. Se pelo contrário acha que o Presidente da República é uma figura fulcral no nosso sistema político e de governo aconselho-o a ponderar bem o seu sentido de voto.

Diz-se muitas vezes que a escolha do Presidente da República se reconduz à escolha da personalidade mais adequada. É precisamente isso. António Guterres revelou uma personalidade sem coragem política, incapaz de afrontar os interesses instalados e cedeu sempre que foi pressionado. Saiu do pântano que ele próprio tinha criado com o ar angelical de sempre, deixando toda a gente a afundar-se lentamente.

Ora, eu não quero um cobarde político na Presidência da República, por muito simpático e inteligente que seja. Ou até por isso mesmo. Logo, não vou votar em António Guterres.



Póvoa de Santa Iria, 21 de Agosto de 2003































OS COMEDORES DE BERINGELAS


Vou hoje falar-vos de um tema que me é particularmente caro. A gastronomia. Um dos meus mais frequentes devaneios esquizofrénicos consiste em imaginar que a minha missão neste mundo é a de enchê-lo com McSilvas. Imagino-me hoje em Budapeste, amanhã em Hong-Kong, a inaugurar McSilvas, onde as Happy Meals trazem uma canja de galinha e biscoitos com um travo a erva doce e a ementa principal são sandes de torresmos. Mas não é com os meus devaneios que quero utilizar os 2.000 caracteres que o "Triângulo" graciosamente me concede.

Esta crónica aborda um tipo muito especial de concidadãos. Os comedores de beringelas. Esse tipo de cidadãos tem uma predilecção muito particular por beringelas. Esse gosto não é muito bem aceite pela restante comunidade. Na verdade, sempre existiram comedores de beringelas. Não sei se é por predisposição genética, por hábito ou por opção. Nem é essa a questão fulcral.

Sentindo-se discriminados, os comedores de beringelas criaram entre si um pacto, um código de conduta, supostamente para fazerem face a essa discriminação. Entenda-se que os comedores de beringelas não são proscritos, nem deixam de existir brilhantes médicos só porque comem beringelas, dedicados políticos, ponderados juízes. Como aliás existem políticos católicos, médicos vegetarianos, directores-gerais sportinguistas ou soldadores abstémios.

Ora, com o pretexto de corrigirem essa discriminação, os comedores de beringelas passaram a utilizar esse facto como único critério sempre que a sociedade em geral lhes concedia algum poder de decisão. Assim, sempre que era preciso escolher alguém para desempenhar um determinado cargo ou para usufruir de um direito concreto, os decisores beringélicos deixaram de ter em conta a competência, a preparação técnica, a vocação ou a necessidade. O único critério prevalecente era a particularidade de apreciação de beringelas. Quem não gostasse de beringelas estaria automaticamente afastado de uma determinada atribuição, independentemente de ser o mais competente nessa matéria. Ora, isto é discriminação. A mesma discriminação que supostamente estaria na origem do pacto entre os beringelivoros.

Fica assim demonstrado que ao contrário do que muitos afirmam, não são os comedores de beringelas nenhuma espécie de iluminados. Não são aliás nenhuma espécie. E regem-se pelos mesmos padrões mentais da restante sociedade.

Tudo isto seria amenizado se o gosto por beringelas fosse aceite pelos que não comem beringelas. No entanto a aceitação não se decreta, não se impõe, quanto muito incute-se.

E curiosamente muitos dos comedores de beringelas seriam os primeiros a reagir contra essa aceitação, pois isso implicaria o fim do tratamento privilegiado e obrigaria a que fossem vistos à luz das suas capacidades enquanto seres humanos e cidadãos e não simplesmente pela prodigalidade no consumo do fruto.

E muita mediocridade viria ao de cima, muitos beringelómanos perderiam poder, pois ao contrário do que alguns afirmam, a beringela não possui nenhuma substância alucinogénea na sua composição, que torne os seus comedores especialmente brilhantes ou sensíveis.
















































OS BISBILHOTEIROS

Ao longo da nossa existência enquanto cultura e civilização, muitos autores, bem mais sábios e cultos que eu, discorreram sobre uma peculiar característica dos portugueses: a bisbilhotice. E associada a esta irresistível tendência para espiolhar a vida alheia vem naturalmente associada uma outra: a desconfiança.

Os portugueses são bisbilhoteiros e por isso mesmo desconfiados, pois a nossa visão do mundo é sempre um reflexo de nós mesmos.

Durante décadas, o regime autoritário exerceu uma "fiscalização" que arbitrariamente misturava vida privada com vida íntima. O Portugal democrático teve alguma dificuldade, para não dizer muita, em aceitar qualquer tipo de fiscalização, mesmo aquela vinculada à lei.

Existem duas ideias sobre as quais convêm fazer alguns esclarecimentos, por muito óbvios que eles sejam. O primeiro prende-se com a necessidade de fiscalização em qualquer sistema social e sobretudo num sistema democrático: é um dos únicos garantes do seu funcionamento e da sua justiça. Não por má fé ou por desconfiança dos outros, mas pela assunção da natureza humana e da sua falibilidade e imperfeição. O fito solidário do próprio conceito de sociedade implica a criação de mecanismos que permitam a essa sociedade aferir as relações entre aqueles que a compõem. A segunda refere-se à confusão que existe entre vida íntima e vida privada. Se eu gosto mais de bacalhau com batatas ou de cozido à portuguesa é do meu foro íntimo e não tem qualquer repercussão directa no convívio social. Se eu tenho um rendimento mensal de 1.000 ou 10.000 euros, esse facto diz directamente respeito à restante sociedade, porque o meu contrato de cidadania implica que contribua proporcionalmente para essa mesma sociedade. Numa sociedade alicerçada no sucesso material (seja o que isso for), este argumento é muitas vezes o argumento da inveja, da utilização perversa por parte de quem se sente afastado desse sucesso, com dolo. Mas a má utilização desse princípio não belisca em nada a sua justeza e a sua necessidade.

Hoje, ninguém fiscaliza ninguém, e o cobertor de fino algodão que deveria ser a fiscalização num regime democrático da sua própria democraticidade e adequação aos fins é uma áspera manta de retalhos da qual todos procuram afastar a sua pueril e virgem cútis.

Em vez de nos fiscalizarmos uns aos outros, de forma transparente e recíproca, pré-determinada, em que o fiscal seja fiscalizado, entrámos no campo da pura bisbilhotice.












FUGA PARA A FRENTE

Recentemente, ouvi um número espantoso. No seu conjunto, os Planos Directores Municipais prevêem espaços para habitação que daria para 50 milhões de pessoas!

Num país que tem uma taxa de crescimento populacional perto do zero e profundas assimetrias entre o espaço urbano e o rural, este desvairo diz muito sobre a responsabilidade de eleitores e eleitos.

Não tenho qualquer intenção de produzir libelos demagógicos contra os autarcas. Repito o que já disse: não acredito que os autarcas sejam um conjunto de condenados britânicos a caminho da Austrália, que por desorientação do piloto do navio tenham aportado no ponto mais ocidental da Europa.

No meio da orgia programática da Constituição de 1976, a Autonomia Local parecia ter finalmente espaço para germinar. Só que por baixo da beleza pictórica do Portugal dos Pequeninos construído pelo Dr. Oliveira Salazar estava um país profundamente atrasado, esvaído numa guerra estúpida e numa emigração em massa. E no frémito da construção de um país evoluído, as autarquias locais foram ficando com as cascas de melão. Perante a necessidade de criarem as infra-estruturas mais básicas nas suas autarquias e na ausência de meios para tal fim, as autarquias procuraram financiamento nos privados. E uma simples assinatura passou a significar muito. Dinheiro a curto prazo para os autarcas e uma exponencial valorização de terrenos para os proprietários de terrenos. Vejamos um exemplo prático: a câmara municipal A tem a necessidade de criar infra-estruturas para 1000 munícipes, e como não tem verbas para tal, financia-se com o dinheiro proveniente da autorização da construção de mais 1000 fogos. No fim desta operação tem as infra-estruturas criadas para 1000 pessoas, mas outro problema: mais 3000 habitantes. Solução? Autorizam-se mais 2000 fogos. Há 30 anos que andamos a fugir para a frente, com a agravante de os problemas gerados pela concentração das populações serem mais do que proporcionais a esse crescimento.

O leitor atento poderá notar que muitas vezes são precisamente aqueles autarcas que mais desbragadamente seguiram esta política de autorização selvagem que têm popularidade e que "limpam" maiorias absolutas em clima de festa, entre sardinhadas e distribuição gratuita de torradeiras e moinhos de café. Deverá então o leitor aproveitar essa capacidade de observação para recuar 40 anos e para perceber o nível de exigência das populações em relação aos seus eleitos. Para se lembrar (ou para tomar conhecimento) de um país sem água canalizada em muitas casas, sem electricidade, de milhares de dedos indicadores da mão (direita, claro) a servirem de assinatura. Imagine ou lembre-se de um país sem jipes nem gt's, mas cheio de pasteleiras às soleiras das portas ou, no caso dos mais afortunados, dessa maravilha do design conhecida por v5. E pondere o grau de informação e de exigência dos retratados neste quadro, mesmo depois de 40 anos. Pondere bem, e não faça como o nosso ex-primeiro ministro eng. António Guterres, que um dia, em plena Assembleia da República, aferiu o grau de desenvolvimento do País pelo número de telemóveis, desaparecendo, meses depois, engolido pelo pântano do que o próprio criara, enquanto respondia a um sms.

Precisamos de cidadãos atentos, informados, que não se fechem em casulos, que não se fascinem com discursos pungentes e efeitos especiais. E precisamos de autarcas que parem de correr, que parem de fugir, que tenham a coragem de dizer não.
















































ROMEU E JULIETA É O MELHOR ROMANCE PORQUE OS DOIS NUNCA PARTILHARAM UM T2

Confesso que o meu título não só é inestético como é também redutor.

Mas nem tanto.

Imaginem que o Romeu não era filho de príncipes venezianos e que a Julieta não pertencia à classe nobiliárquica, de, por exemplo, Florença.

Imaginem que o Romeu era um chavalo que vivia em Santo António dos Cavaleiros, ou no Seixal, ou na Amadora, que aos dez anos teve os seus primeiros ténis Nike, e que bem apessoado, cheio de estilo, trepou a sua adolescência como um bingo em que se faz linha com naturalidade e se ganha o primeiro prémio com um palito ao canto da boca.

Temos então o nosso Romeu, homem feito, dezasseis aninhos de guelra e muito peito, pronto a esclarecer como é que se faz, verdadeiro mestre na arte de bem engatatar, não é gaffe, é o verbo adequado, como adequada é a Julieta, essa miúda de pernas grossas mas esguias, de saias que mostram o suficiente sem serem escabrosas, de peitos salientes na camisola de lã e cabelo apanhado a completar uma cara onde o ligeiro toque de baton finaliza, de forma magistral toda a sua figura.

Temos pois aqui os nossos heróis. E Romeu merece sem dúvida esse epíteto: É simpático, um grande jogador de bola, verdadeira emoção no ginásio quando a Setôra Helena manda pôr a cama elástica e o mesmo se aplica a Julieta; Quantas apostas já correram na turma para saber qual o sortudo que mais se tinha aproximado de ver os seus mamilos? Um carinho dela é a conquista da Normândia, um beijo uma Hiroshima incontrolável.

Claro que todos apostavam no romance, que aguardava apenas uma oportunidade. E diga-se que o código era claro: O Romeu e a Julieta.

Apareceu então aquele bendito passeio a Tomar, com a malta toda na camioneta, a fazer barulho, com o rádio do Mário aos berros, o Carlos a enrolar umas ganzas e o Romeu e a Julieta, sentados lado a lado, a brincarem um com o outro, já a prepararem o terreno para a conclusão mais óbvia.

Tudo correu às mil maravilhas: a setôra Lurdes bebeu que se fartou, fumou uns cigarros e limitava-se a olhar com olhos meio embevecidos qual goraz pescado há três dias, o Romeu convidou a Julieta a dar uma voltinha de barco e no fundo a malta, na margem aplaudiu quando ele largou os remos e se mandou a ela, aplaudiu.

Quando voltámos de Tomar a coisa prometia....o Romeu pôs a mão onde a parte masculina da turma gostava de pôr e a Julieta correspondeu com os devidos fonemas.

Estava pois concretizada a relação preferida, determinada.

O Romeu continuou a jogar à bola, autêntico Maradona dos juniores, a Julieta continuou a dar-lhe um beijo depois dos jogos e aguardava-se apenas que, terminado o 12º ano ele assumisse o seu papel de noivo e de sócio-gerente na loja do pai. Ela, claro, continuaria a estudar, iria tirar um curso superior.

A primeira vez, foi de facto um bocado embaraçosa. Foram ambos para a viagem de finalistas em Marbella e acabou por acontecer, depois de algumas Cubas Libres. Entre suores e espasmos, aconteceu.

Claro que Romeu, jovem coqueluche e sócio-gerente da firma do pai não deixou de participar activamente nas idas ao Sampaio, bares de engate e saídas com destino certo num determinado prédio da Columbano Bordalo Pinheiro.

O ritual repetia-se todos os sábados com o beijo apaixonado dado ás 00.15 a Julieta e a entrada imediata no GTi de meia tigela que estivesse à mão.

Por sua vez, Julieta continuava a frequentar o curso superior de Línguas e Literaturas Românicas. Sempre na expectativa de algo mais que as relações de Sexta à noite no carro, e diga-se à espera que o Rui, seu colega, deixasse Kant a um lado.

O Rui devia estar mesmo apaixonado por Kant, ou então muito distraído. E acabado o curso, colocada numa escola de putos barulhentos e inacessíveis, Julieta estava pronta para casar. O mesmo se diga de Romeu, pois entretanto tinham comprado um T2 perto e nada parecia faltar.

Diga-se que o casamento foi lindo. Aliás, todos os casamentos são lindos. O Romeu de preto, alto, atlético, pantera coxa e ressacada, de pestanas coladas, a Julieta, modelo enfrascado em passos côncavos, e depois o copo de água, com o tio Luís completamente bêbedo a arrastar a tia Rosa e as maquilhagens e perfumes dos convidados a desfazerem-se sucessivamente nas bochechas dos dois, enquanto os envelopes se aninhavam nos seus colos.

A lua-de-mel é sempre sempre um filme de Walt Disney que se compra com o Rambo IV.

O estranho vem depois, quando se chega a uma cama que teimam em afirmar que é nossa quando nunca lá dormimos. Vem depois com as dúvidas nos passos a tomar quando a casa está às escuras. Quando à mesa não estão as pessoas habituais.

Julieta era, foi e será sempre uma aprendiz exemplar. Mas nunca será uma cozinheira. O que desagradou profundamente a Romeu. Bom, bom era vir do treino e comer o franguinho da mãe Emília, com as batatinhas fritas.

E Romeu, diga-se, nunca será um corredor de fundo. É antes um velocista que percorridos os 100 metros, arfa e extenuado, quer descansar.

Vem depois aquele momento de carinho, em que posta a loiça na máquina, se sentam em frente ao televisor, enroscados quais gatos com o cio, beijinhos nos ombros e no queixo e eis que começa a telenovela, eis que Romeu se levanta e vai ter com a malta ao café, beber a bica e um whisky, fazer um snooker.

Ao fim de semana a coisa melhora, porque tendo a Sport TV, não há jogo que a malta perca em casa do Romeu. Assa-se umas febras, umas entremeadas, abre-se um garrafão que o pai do Toni trouxe da terra e está feito. Se o Benfica ganhar, a malta ainda bebe um Cardhu e depois vai até ao café, para fazer uma cartada.

E assim vão o herói e a miúda mais boa da turma.

Claro que falta aqui um elemento essencial, que é o rebento. Entre tantas corridas de 100 metros, alguma teria que dar um record. Perdão, um recuerdo.

A Julieta ficou então grávida, entre vivas e cumprimentos.

Se a caloria tinha sido nos últimos meses uma companheira, uma camarada das horas más, com a gravidez tornou-se uma espécie de ursinho de peluche que se leva até para a casa de banho e se coloca sentado no bidé.

Romeu por outro lado, carente dos meetings toca e foge voltou às suas amigas eslavas, altas e rosadas, da Columbano, tendo até direito a uma praxe do tipo o bom filho à casa retorna.

Nasceu pois a Cátia Vanessa, espécie de camaleão parecido com todos os familiares que invadiram o T2, beberam o melhor Cardhu das noites de bola e fizeram desaparecer as 3 dúzias de bolos sortidos da pastelaria do Sr. Manel, que a Maria do Carmo, Carminho, mãe da Julieta e sogra do Romeu encomendara, entre conversas sobre carros e conselhos avulsos e absurdos sobre puericultura.

A romaria continuou com o Sr. Guilherme, cliente da loja há mais de 10 anos, respectiva esposa-autotanque e filhos irritantes, o Nesga, o Palitos e o Zeca, amigos das suecadas e das putas, a tia Ondina, que no casamento se lembrou de ter afrontamentos, e até o Rui, colega da Julieta na Faculdade e por acaso, professor na mesma escola.

Depois é que foi o bom e o bonito. Segundo o Romeu, a Cátia Vanessa sai à mãe, chorona; a Julieta achava que saía ao pai, sempre descontente. Vamos a um consenso: a miúda passava as noites a berrar.

Nos primeiros meses Romeu sentiu-se constrangido e mal punha os pés fora de casa. Olhava embevecido a sua filha e incomodado o hipopótamo em que a Julieta se tinha transformado. Bebericava noites fora whisky enquanto trincava amendoins e esporadicamente perguntava como é que tinha corrido o dia às suas duas meninas.

No verão, foram passar 15 dias a casa da tia Margarida, no Algarve, entre fraldas fedorentas e fatos de banho que teimavam em não segurar as mamas de Julieta, onde as provas de 100 metros se transformaram em corridinhas de 50.

Na loja as coisas corriam às mil maravilhas: não havia mulher, nova, recauchutada ou velha que não perguntasse pela Cátia Vanessa e que não felicitasse o pai e que perante um elemento comprovadamente fértil se inibisse de o cumprimentar efusivamente.

Julieta voltou à escola, aos miúdos maioritariamente broncos e ao Rui, essa coisa peganhenta que teimava em apaparicá-la, com a elegância de um morcego em pleno dia na Flórida.

Voltava ao fim da tarde a casa, ia buscar a Cátia Vanessa ao infantário, olhando a cozinha, já arrumada pela empregada, entretendo-se a mudar copos e tupperwares enquanto Romeu não chegava, a tresandar a cerveja e usando o vernáculo como muleta retórica.

Jantavam quais ruminantes em silêncio, excepto a Cátia Vanessa, que teimava em espalhar tudo pela mesa, para grande descontentamento de Romeu, que queria ver o telejornal em paz e olhava fulminante Julieta, sempre que a trajectória dos alimentos projectados pela sua filha coincidiam com o seu espaço aéreo.

Levantava-se, acabado o repasto, exibindo a sua crescente volumetria e feita a higiene dentária manifestava-se com um "estou satisfeito", aerofagicamente falando, claro, dirigindo-se então para o café, onde eminente, cortava um Ás de Copas com um Duque de Paus.

As já distantes corridas de 100 metros tinham-se transformado em lançamento de peso: O Romeu lançava-se para o lado direito da cama e a Julieta, caía, graciosa, com os seus 77kg, no lado esquerdo da cama. Grande Ernesto, pai de Romeu, homem prevenido que lhes tinha oferecido uma cama robusta.

Se Romeu se contentava com as Irinas e as Natachas da Columbano, nas primeiras sextas do mês contabilístico, Julieta ficava a ver navios, tipo Brad Pitt ou Keanu Reeves, em filmes sucessivamente alugados, refugiada em molotoff's e sortidos de hipermercado.

Aos domingos iam almoçar a casa dos pais, ou dos sogros, conforme a perspectiva, com uma programação de fazer inveja. Romeu mostrava, orgulhoso, o cartão de sócia do seu clube, desde a nascença, da sua filha, enquanto Julieta abanava os ombros e fazia esgares às inquirições de sua mãe.

Foi então que Julieta, um dia por acaso, num intervalo entre duas aulas, olhou para o Rui e achou que afinal ele não parecia um morcego, quanto muito um marsupial. Foi então que finalmente almoçou com ele fora do refeitório da escola, e que no caminho de volta resolveu masturbá-lo, enquanto o mesmo estrebuchava, suava, o seu cabelo oleoso pingava e quase hirto, teve um orgasmo.

Voltou ao fim da tarde para casa, viu o rinoceronte a entrar, a comer, a manifestar-se ruidosamente e a sair para o café, e deitou-se com um sorriso sereno mas vivo.

No outro dia, saída do banho, conseguiu limpar-se sem voltar costas ao espelho e olhou-se de frente, olhou os pneus e os socalcos que povoavam o seu corpo e lembrou-se dos seus seios outrora rijos e proeminentes.

Limpou-se, vestiu-se, perfumou-se, passou um perlimpimpim pela cara e foi para a escola, sentindo em uníssono o roncar do motor e o seu ronronar.








O VERDADEIRO ARTISTA


O Dr. Pedro Santana Lopes é, de longe, o melhor demagogo da política portuguesa. Não o digo com o fito de magoar ou de ofender, até porque, convenhamos, não tenho esse poder. Nem o digo necessariamente num tom depreciativo. A sua grande arma consiste em acreditar, ou aparentar que acredita no que diz, com convicção e é absolutamente irrelevante se amanhã disser outra coisa completamente oposta, porque tem a inteligência e a capacidade retórica suficientes para parecer coerente. Santana Lopes consegue transmitir uma imagem genuína também porque representa uma certa classe média arrivista, de tradição secular em Portugal, do neto do vendedor de bacalhau que conseguiu subir na vida, "tem pinta", para usar uma expressão popular. De alguém que não tendo a espessura das élites consegue conviver com elas e provocar-lhes inveja, como também não tem problemas em descer à rua. E como homem esperto que demonstra ser, vai aprendendo. Sendo razoavelmente culto, está longe da erudição e mantém por isso uma prudente distância das cliques, por onde serpenteia e destila charme, como também não tem problema em concordar com as ideias mais básicas do amigo do Primeiro-Ministro, o já mítico Zé, conseguido sempre transformá-las em algo que seriamente se pode defender. Cultiva a sua imagem, é o genro que todas as mães gostavam de ter. E é por tudo isto que me surpreende que certa Esquerda vire baterias para o Dr. Paulo Portas, como o grande demagogo da Direita portuguesa. Comparado com Pedro Santana Lopes, Paulo Portas é uma marioneta caricatural, uma espécie de seguro de vida para a Esquerda portuguesa, porque enquanto existir, muito gente que se integra nesse animal da fábula política portuguesa que se chama Eleitorado do Centro, vai "virar" à esquerda.

É que Paulo Portas, sendo um demagogo dotado, provavelmente mais dotado que Santana Lopes, nunca vai ser popular, pela sua própria natureza. Nunca vai perder aquele ar de beto da Avenida de Roma, por mais feiras e fainas que percorra. Pode até descer às minas, que irá sempre parecer uma marquesa incomodada com o cheiro a suor do povo. Santana Lopes é o retrato do país que somos, brota dele. Portas sonha, como muito bem explicou o seu amigo Miguel Esteves Cardoso, com um país que não existe nem nunca existirá. Portas era o puto mais inteligente da rua. Pedro Santana Lopes era o puto mais esperto da sua. Tem conseguido esbater a aura de inconsequente que o perseguia. Ganhou a Figueira da Foz sozinho, contra uma arrogância incompatível com a inteligência propalada dos seus adversários. Conseguiu devolver, pelo menos em termos de imagem, a importância àquela cidade. Ganhou Lisboa, que é mais importante que quase todos os Ministérios instalados no Terreiro do Paço. Obrigou o Primeiro-Ministro a ouvi-lo. Paulo Portas tornou-se presidente de um partido que nada mais é que um pequeno clube de sadomasoquismo, que ao longo de mais de duas décadas se foi divertindo a queimar ou a tentar queimar vivas algumas das pessoas mais inteligentes e válidas da Direita portuguesa, como Francisco Lucas Pires, o Prof. Adriano Moreira ou o Prof. Freitas do Amaral. Um partido que, nas próprias palavras do seu líder, poderia ter tido o Rato Mickey como candidato à liderança. Ou o Elmer Fudd, quem sabe. Que hoje é uma fábrica a produzir miúdos, aprumados por fora e completamente ocos por dentro, sem nada para dizer, velhos de 900 anos. Chegou a Ministro de Estado sem ninguém o querer, era apenas o puto que estava mais à mão, quando o PSD precisava de mais meia dúzia de centímetros para chegar ao fruto da árvore do poder e que agora veste uma casaca que manifestamente não lhe serve, que lhe está larga e lhe dá um ar ridículo. Por tudo isto não compreendo como é que a Esquerda se assusta com Portas e não combate Santana Lopes. Santana Lopes é credível, Portas não. Santana Lopes chega ao eleitorado que vagueia entre o PS e o PSD, Portas não. Portas nunca vai chegar a Primeiro-Ministro. A Santana Lopes basta esperar pelo momento certo, que se está a corporizar em cada manifestação de mediocridade do seu próprio partido.

Póvoa de Santa Iria, 21 de Setembro de 2003











































PORTUGAL DOS PEQUENINOS


A questão do Mouchão da Póvoa tem alimentado as páginas dos jornais regionais nos últimos tempos.

Não vou tomar posição sobre a matéria em causa. O assunto não pode ser encarado através deste ou daquele ponto de vista. É tão objectivo que não permite margem para apreciações subjectivas. Podemos discutir gostos, opções políticas, preferências culinárias, etc.. Não vale a pena discutir se Lisboa fica ou não à beira do Rio Tejo. É um dado objectivo.

A questão em concreto leva-me no entanto a uma reflexão mais genérica, que é a do modo de divisão do território. A própria expressão "divisão do território" é em si contraditória e demonstrativa do espírito que tem presidido àquilo que se deveria chamar organização do território.

Há mais de 150 anos que a organização administrativa do País não tem qualquer alteração relevante. A matriz é a mesma, embora variando as nomenclaturas: Freguesia ou Paróquia, Concelho ou Município, Distrito ou Província. É esta espécie de molde cego que se aplica sobre o País, ignorando dois factos essenciais na construção de qualquer modelo: que constituindo uma unidade coerente, o País não é uniforme e que se verifica uma progressiva concentração nas zonas urbanas e nas zonas litorais. A realidade encarregou-se de tornar obsoleto este modelo. A dicotomia é hoje acentuada: de um lado temos aquilo a que se chamavam zonas rurais, que são hoje uma espécie de Quénia, mas sem as palancas e do outro a suburbanização das vilas, com dois sintomas inconfundíveis. Primeiro a construção de um hipermercado nas redondezas; depois uma nova urbanização, criando um subúrbio, centrípeta das aldeias à sua volta.

A "inteligentsia" nacional, autista e mamífera como convém, ignora por completo esta realidade. O critério essencial de distribuição de competências é a forma. Isto significa que se considera como fazendo parte da mesma realidade e tendo em consonância as mesmas soluções, freguesias com 100 ou 10.000 habitantes e concelhos com 10.000 ou 100.000 habitantes. Este modelo é completamente irracional e ineficiente. Considero o "império da eficiência", tão em voga em qualquer discurso, um retrocesso, uma espécie de truque de cartola que se utiliza quando não se sabe o que dizer. Num dos meus pesadelos mais frequentes vejo-me deitado perguntando a alguém a meu lado: "Foi bom, Ermelinda?", respondendo-me esse alguém "Não sei, ainda não consultei os dados. Deixa-me acabar de fumar que já vejo o que diz o medidor de espermatozóides...". Recusando este discurso oco que tudo subjuga perante a necessidade de eficiência, não deixo de considerar que o conceito deve ser ponderado quando o que está em causa tem repercussões económicas relevantes.

Administrar o território tem um custo económico e nesse sentido é impossível não considerar a eficiência como um dos critérios indispensáveis não só à boa gestão, como até à aplicação da justiça. Um concelho ou uma freguesia não são mais autónomos por gerirem a varrição ou a recolha de lixo e nem essa competência é uma garantia da sua sobrevivência. Pelo contrário, funcionam muitas vezes como um sorvedouro inadmissível de dinheiros públicos e acabam por prestar um serviço ineficiente, porque não têm dimensão nem conseguem funcionar em economias de escala. Enquanto não acabar o "corridinho" que junta os caciques e as toupeiras dos corredores do Poder em almoçaradas onde desbaratam o erário público, não se vai conseguir alterar o estado das coisas. A recolha de lixo baseia-se nos mesmos princípios técnicos e ambientais em todo o País. Não existe nenhum cartaz turístico que anuncie: "Bem vindo a Rebordosa do Meio, Terra dos Lixos Megalíticos". Não é pela recolha do lixo (ou por outros serviços públicos essenciais) que se ganha autonomia, é pela defesa do património, pela defesa da cultura local, pela acção social, pela educação, essas sim questões que têm uma realidade própria e que necessitam de um acompanhamento de proximidade. Os concelhos do Interior vão continuar a esvair-se alegremente, e serão sepultados em caixões sumptuários.

Para além deste molde obsoleto, existe ainda um outro problema. O crescimento urbano encarregou-se de tornar as divisões das freguesias e até dos concelhos completamente inadequadas. Não se pode viver numa democracia liberal, onde a liberdade de circulação e de estabelecimento são garantias essenciais e ter instrumentos de gestão do território feudais. Vamos chegar ao ponto em que será necessário convocar uma cimeira entre Presidentes de Junta para decidir quem limpa o dejecto de cão que ficou depositado no meio da rua que separa duas freguesias. Existe alguma racionalidade, alguma justificação, em dividir aglomerados populacionais coerentes e contínuos, só porque os limites da freguesia (criados há mais de 150 anos, em muitos dos casos e numa realidade completamente diversa da actual) passam no meio da urbanização?

É o Portugal dos Pequeninos (e não estou a falar do parque em Coimbra). Dos cérebros pequeninos, das mentalidades tacanhas, dos caciques aplacados com rações de engorda, por bailarinos que passam com discrição nos átrios impecavelmente encerados do Estado.

Não resisto a um pequeno comentário sobre a questão do Mouchão.

Não considero o assunto do Mouchão polémico, porque para ser polémico era preciso que existisse alguma margem de discussão.

Ora, a menos que surja algum fenómeno geológico inaudito, o Mouchão está e sempre estará na Póvoa. Isso é indiscutível. Logo não há polémica. Basta seriedade.


















CRISE? MAS QUAL CRISE?

Palavra de honra que eu sou um tipo cordato. Nunca subscrevi um abaixo-assinado, jamais participei numa manifestação, quando era miúdo jogava a extremo-esquerdo, longe do bulício do centro do terreno. Não posso no entanto ficar calado perante esta onda de lamechice que nos varre.

Sinto uma atmosfera de sala de espera de consultório de dentista, nas ruas, nas paragens do autocarro.

Francamente não percebo de onde vem esta ideia de crise. Faço minhas as palavras daqueles que, em altos cargos da Nação apelam, veementemente, para a nossa capacidade de improviso, para o golo no último minuto, para a pega conseguida a escassos centímetros das tábuas.

Há já largos meses que resolvi dar um abanão na dita crise, numa noite em que o meu Sporting tinha sofrido mais uma humilhação.

A partir desse momento a minha vida alterou-se por completo. Imaginação é a palavra chave.

Até esse momento nunca tinha ligado muito à política, nem sequer votava. Desde Junho que comecei a sentir na pele os benefícios da Democracia. Não faltei a um comício das Europeias e misturado entre reformados a pairar algures entre o planeta Xanax e a nave espacial Dinintel, passei parte do Verão a comer bifanas e sardinhas. Como detesto discriminações, percorri o espectro partidário da esquerda à direita e vice-versa, com uma frutuosa passagem pelo centro. Tenho "t-shirts", canetas e bonés para o resto da vida e porta-chaves que dão para prender as chaves de todas as casas previstas nos pdm's. E quebrou-se-me outra ideia feita: os políticos são de carne e osso, são gente. Um deles, por sinal bem conhecido, fez-me mesmo um pedido pungente, no meio da azáfama da campanha: "É pá, dê-me aí um cigarro enquanto os tipos das televisões estão a entrevistar o ...". Fiquei sinceramente tocado.

Esta comunhão deu-me forças para um próximo passo, mais temerário. Em Agosto entrei como penetra no primeiro casamento. Prefiro aqueles sítios onde se realizam 3, 4, 10 copos de água ao mesmo tempo. Como apesar de não ter muitos estudos, não sou estúpido de todo, só entro em casamentos com mais de 60 convidados. Assim sou sempre da "outra parte". Com a rotina a coisa foi melhorando. Passei a tirar fotografias com os noivos. Tenho uma fotografia em cima da cómoda, em que estou entre a Cátia Andreia e o Leandro, que a esta altura devem estar felizes, no seu T3 de Alfragide, depois de uma lua-de-mel em Puerto de Los Cerdos, nas Caraíbas. E no fim recolho sempre os camarões e os croquetes, deixando senhoras gordas e atarracadas, cheias de pulseiras, dolorosamente comprimidas em vestidos verde-alface, roídas de inveja com o meu tupperware 16 em 1, que me permite separar até 16 tipos de alimentos só numa embalagem, sem misturar os sabores e os cheiros. Cheguei mesmo ao inimaginável. No casamento do meu sobrinho Valter (foi assim que me apresentei aos familiares da Janice) e da minha prima Janice (fiz constar que era minha prima no meio dos convivas do Valter), levei o Arnaldo (suponho que era meu sobrinho) a casa, por sinal um belo apartamento, ali como quem vai para Linda-a-Velha, mas vira na rotunda à esquerda, comprado e todo mobilado pelo pai, dono de 3 talhos na zona de Mem Martins, já que o Arnaldo estava num estado lastimoso e incapaz de enfiar a chave na ignição do jipe, pediu-me encarecidamente que o levasse a casa.

Foi um Verão em cheio. Já não estava habituado a este tipo de convívios. As únicas festas onde ia eram as festas de Natal da empresa, em que salvo os arranjinhos já conhecidos, toda a gente estava com sorrisos de anestesia. Os únicos parentes que tenho moram na zona de Viana do Castelo, estão velhos e são chatos. Estes meus parentes ocasionais são efusivos, alegres e diligentes.

O Verão acabou-se e esta nova dinâmica que imprimi à minha vida não se coaduna com estas vicissitudes.

Habituei-me a comer fora de casa. Não gasto gás, não gasto detergente nem água. Passei a aproveitar as promoções de hipermercado para almoçar e jantar. Se no princípio andava meio acabrunhado, espreitando em cada fileira de prateleiras se alguma promotora lá estava, hoje mantenho uma rede de contactos que me permite saber, com a antecedência de semanas, o que é que vai ser o meu almoço no dia tal. Graças ao profissionalismo das empresas que colocam esses produtos em promoção. É verdade que por vezes tenho umas cólicas que os meus colegas do escritório confundiram, nos primeiros tempos, com ataques de epilepsia, mas graças a uma promoção de pastilhas, que para além de ajudarem a digestão, fazem crescer o cabelo, deixam os dentes mais brancos e tornam o viagra numa anedota, hoje em dia não sinto nada. Não sinto dores, não sinto as mãos nem os pés. Tenho a leveza dos astronautas. Ando na rua como se andasse na passerelle.

Não me escapa uma promoção. De escovas de dentes; de comida para gatos; conjuntos de fondue; lâminas de barbear para o menino e para a menina; flores naturais de plástico; conjuntos de cutelaria Ninja; relógios Lello; jogos de cama com motivos hentai; relógios que marcam as horas em 233 capitais do Mundo; termómetros de bolso que medem temperaturas até 1000 graus; Nossas Senhoras de Xangai; dicionários português-congolês; um pikatchu que descasca fruta; tudo devidamente etiquetado e embalado, porque sem organização um tipo não vai a lado nenhum.

Como deixei de comer em casa, utilizo a cozinha como armazém das promoções, enquanto aguardo pela abertura da minha primeira loja, que singelamente registei como "Ao de Leve".

Estou convencido que vou ter sucesso. Pedi ao Artur, que é um tipo porreiro, colega do escritório, doutorado em Comércio Internacional, que passa guias de remessa na secção de aprovisionamento da firma, que me fizesse um estudo de mercado e o resultado não engana. Não tarda nada estou a abrir a segunda loja, depois a terceira e a partir daí ninguém me pára.

Crise? Mas qual crise?








AS COISAS QUE ME FASCINAM


As cores que se escondem por detrás das cores que estão por detrás das cores, dentro das outras cores;

O odor de um corpo feminino mórbido de prazer;

Volúpia no meu armário;

O que me dizes no teu silêncio;

O modo simples como os homens complexos dizem as coisas sublimes;

Caucasiano perdido na humidade dos trópicos;

Acrobacias fonéticas;

Percutir; ofegar; morder; tactear;

Heteronomizar-me;

Saltitar sobre finas linhas maniqueístas;

Enroscar-me; espreguiçar-me, desenrolar-me;

Rir-me de mim;

Balbuciar línguas que desconheço;

O lapso ínfimo entre Morfeu e este Mundo;

Inspirares-me;

Deixar Momo à solta num jardim circunspecto;

Forcado de mesa;

Girassol acústico;



Estas são algumas das coisas que me fascinam; pondera as tuas.


In "Pequeno Tratado de Filosofia Barata, edição em paperback"
Nuno Augusto, Fevereiro de 2004


BCP


A "estória" conta-se rapidamente. Recebi, nos idos anos 90, uma espécie de circular, que me informava do encerramento da conta-corrente que eu tinha na Nova Rede. Os termos da carta, num português de manga-de-alpaca admirável, levaram-me a responder do seguinte modo:

Exmos.Srs.


Venho pela presente informar V.Ex.as, de que após a atenta leitura da amável carta que me dirigiram, pareceu-me necessário justificar os actos e os factos dos quais me imputam.

Assumo em pleno que a minha conta tem tido uma movimentação irregular, como V.Ex.as sabiamente lhe chamam; tal explica-se facilmente: desde que o zeloso Eng. Ferreira do Amaral abandonou o M.O.P.T.C., que as redes viárias se têm deteriorado a olhos vistos, que é como quem diz a pneus carecas, a suspensões inertes, a amortecedores graníticos.

Ora, sendo eu um habitante dos subúrbios de Lisboa, sou obrigado a transitar nas E.N., nas CRIL'S e nas CREL'S do nosso descontentamento.

Devo aqui referir que pela mais pura lógica, que sendo cliente do Banco Comercial Português, só se justifica que viva nos subúrbios desde que essa prestigiada Instituição criou o apêndice proletário designado por Nova Rede, visto que se fosse nos bons velhos tempos do BCP, eu provavelmente viveria numa distinta moradia nos arredores do Porto, e todas as manhãs conduziria o meu BMW ou o meu Mercedes para a minha indústria no vale do Ave, daquelas que se encontram eternamente a beira da falência, pelo menos até ao próximo subsidio ou perdão fiscal.

Prova-se assim, que só pelo acto caritativo dessa Instituição, ao dignar-se olhar para este e outros humildes cordeiros de Deus, com toda a certeza na sua infinita sabedoria corporativa, se gerou esta simbiose única, o que sendo louvável, tem como inconvenientes o cheiro a óleo, a perfume barato a empestar as assépticas dependências, os fatos de macaco, os putos impertinentes a estragarem os vasos com a última maravilha em carrinhos telecomandados, enquanto o pai se desunha para escrever por extenso a importância que quer levantar.

Mas V.Ex.a, Sr. Pedro Gatafunhos, não é certamente o autor ou o subscritor da política expansionista e populista da Instituição, quanto muito será um zeloso funcionário, daqueles que trabalham doze ou mais horas por dia, cruzando-se com outros funcionários, igualmente bem barbeados e de gravata aprumada, que olham da mesma maneira para si e para os 486 e para as fotocopiadoras.

Aliás, desejo sinceramente que além de zeloso, seja um homem de sorte, um daqueles raros funcionários que têm a oportunidade de trabalhar com mulheres, esse misterioso ser que teima em permanecer do lado de lá do balcão das 8 e 30 ás 15.

É que, mesmo sendo uma colega feia, sofrendo de hirsutismo, gorda, flácida sebosa, vesga, cheirando mal das axilas, cheia de verrugas, deve ser concerteza, uma mulher brilhante, única, tendo em conta os elevados padrões dessa Instituição na contratação de quadros, sabendo-se que cada vez existem mais mulheres licenciadas, suponho mesmo que será uma laureada com um Nobel.

Dou-lhe até um conselho á borla, visto ter por si, embora não o conheça pessoalmente, uma certa simpatia; Na próxima reunião que tiver com o seu superior hierárquico, ou melhor, fazendo uso da política da empresa, o capitalismo de rosto humano, imbuído de incenso, escreva directamente á Administração e sugira que as (poucas)funcionárias, em vez de roerem um kit kat á socapa, comecem a ingerir doses cavalares de esteróides anabolizantes, de modo a evitarem a concepção, o que se por um lado é mau, numa perspectiva a longo prazo, visto que será menos uma fêmea a reproduzir potenciais clientes, por outro lado aumenta a sua produtividade e além da gravidez, até as más disposições menstruais, se forem de facto doses cavalares, cessarão, visto que neutralizada a causa, necessariamente o efeito desaparecerá.

Não pude deixar de reparar, ao ler o penúltimo parágrafo da sua gentil missiva, indícios de depressão, pelo seu lamento ao informar-me do encerramento da conta, mas não se preocupe, homem, que eu tentarei sobreviver.

Para lhe provar que não estou de má-fé, convidou-o desde já a dirigir-se ao meu aglomerado suburbano, para bebermos um copo, e prometo-lhe desde já, que se o vir deprimido, não sai daqui sem uma caixinha de Dinintel, que faço questão de lhe oferecer, se se der o caso de não usar.

Confesso-lhe que nutro já por si uma sólida amizade, daquelas feitas de copos, engates e outras cumplicidades, mas não sei bem explicar porquê.

Quanto ao seu pedido, lamento informá-lo de que não possuo quaisquer cheques, e que os cartões desapareceram algures entre dois bares suburbanos, desses que cheiram a suor e a fumo, onde os exibia, de peito inchado, esperando que na confusão do barulho das luzes, não se notasse que eram de débito, tentando enganar os mais distraídos, dizendo que eram gold, visa, eu sei lá.

Queira pois aceitar os mais sinceros cumprimentos deste humilde e tísico cordeiro de Deus, relembrando a V.Ex.a, que por vezes os cordeiros engordam.

Se por mero acaso tal me suceder, espero que continue a tratar do seu pasto com a inteligência e o brilhantismo que demonstra, para que eu, então já mais balofo e pesado, mas igualmente humilde, possa comparar o seu com outros pastos, e escolher de consciência tranquila, o que o meu peso exigirá, como por certo concorda.

É que, como V.Ex.a por certo sabe, pastos há muitos...



Com a maior consideração






_____________________
(Nuno Augusto)








P.S.: Se esta carta, como imagino, não servir para nada, espero pelo menos que divirta quem a leia, quebrando assim a monotonia e o cinzentismo que provavelmente preenchem os seus dias.

































POLÉMICA COM ANTÓNIO NABAIS

A sociedade civil povoense, leia-se, a oposição política local, resolveu organizar, em conjunto com meia dúzia de desempregados políticos e com "intelectuais" chateados com o Mundo, um debate sobre o Urbanismo na Póvoa de Santa Iria. O que se segue é a intervenção que eu tinha programado fazer, interrompida a meio, perante uma plateia incrédula com a minha intervenção, assim como a minha resposta ao mimos que António Nabais me dirigiu.

Intervenção de 13-02-04


Chamo-me Nuno Augusto e vivo há 33 anos na Póvoa de Santa Iria. Esse facto só por si desperta o meu interesse na matéria hoje em discussão, porque nesses 33 anos a Póvoa passou por profundas transformações.

Em termos de mobilidade, julgo ser possível apontar duas grandes transformações. Desde logo houve uma transformação nos padrões de mobilidade, assim como no grau de exigência dos cidadãos. Há 25 ou 30 anos a grande maioria dos povoenses não só habitava na Póvoa, como trabalhava nas unidades industriais da freguesia ou de freguesias limítrofes, naquilo que se convencionou chamar a cintura industrial de Lisboa. Uma das imagens mais vivas da minha infância é a dos trabalhadores das fábricas (Soda, Moagem, Eurofil) a dirigirem-se para as mesmas a pé ou nas suas pasteleiras. Também a grande maioria da população obtinha a sua escolaridade na Póvoa, usufruíam os seus tempos livres no "Chico Guedes" (O Cine-Nazaré) ou no Grémio. Hoje existe uma grande dispersão territorial naquilo a que podemos chamar as diversas actividades decorrentes da vida em sociedade. As pessoas trabalham ou estudam noutros concelhos, divertem-se em Lisboa e passam férias e outros tempos de lazer em pontos distantes do nosso território.

Porque estamos a falar de um fenómeno social, que naturalmente se transforma com o decurso do tempo e não de uma realidade matemática, imutável, julgo ser essencial analisar o passado, caracterizar o presente e perspectivar o futuro.

Da minha parte não seria sério desvalorizar o fenómeno estrutural da concentração da população nas grandes áreas urbanas, sobretudo nas últimas décadas, como também não seria sério não referir que apesar desse pressuposto, existiram, a nível local, responsáveis que têm nome, rosto e assinatura e que detinham o poder e o dever de responder o mais adequadamente possível a esse fenómeno.

Devo esclarecer que, sendo eu agnóstico, pressinto que por vezes Deus me dá uma ajuda. Exemplo disso é o episódio que resumidamente passo a referir:

"Há algum tempo, não sei precisar exactamente quanto, descobri duas publicações absolutamente preciosas. Por herança genética tenho um especial gosto por livros e procuro não perder nenhuma feira do livro e eventos similares. Numa dessas incursões, enquanto olhava de forma absolutamente aleatória para os livros expostos (e daí a intervenção divina que há pouco referi) descobri dois livros magníficos: um intitula-se "Como se fazem os bébés" e faz parte do meu imaginário infantil, dado que a sua edição original (pelo menos original para mim) me foi dada pelo meu pai, há mais de 25 anos. Comprei esta nova versão porque a outra já está deteriorada e a nossa memória deve ser preservada por todos os meios necessários. Aconselho o livro a todos, pais e candidatos a, porque o livro não se limita a descrever o procedimento funcional, deixem passar a expressão, mas mostra como é que se fazem efectivamente bébés, com amor e carinho.

Mas para o debate de hoje o segundo livro é igualmente importante. Trata-se de um estudo encomendado à empresa Hidrotécnica, pela então Comissão Administrativa do Município de Vila Franca de Xira, datado de 1976 e no qual é feita uma análise aos projectos imobiliários e aos problemas em termos de gestão de espaço público e de mobilidade que a aprovação dos mesmos implicariam se não fossem simultaneamente tomadas medidas minimizadoras do impacto provocado pelo aumento exponencial da população. Em suma, o estudo diz que "se os senhores autorizarem tudo aquilo que está previsto ou projectado vão ter graves problemas de escoamento de tráfego, vão ter graves problemas com as linhas de água, etc., etc.,". Ora, esses senhores têm, como eu disse, nome, rosto e assinatura.

Durante mais de 20 anos foi o Partido Comunista Português que dirigiu o Município, que tomou as decisões que hoje condicionam e muito, as decisões de outros.

Por isso, em nome da seriedade e do rigor, julgo que, ao contrário do que faz, não pode o Partido Comunista Português ter uma posição crítica e falaciosa sobre as opções actuais, sem pelo menos assumir os erros do passado e pedindo desculpas públicas por aquilo que no mínimo é, objectivamente, negligência. Ao contrário, os responsáveis por este partido têm, no meu entender, aproveitado de forma despudorada a ignorância dos factos por parte da grande maioria da população da Póvoa, que não está informada sobre estes factos, assim como o natural descontentamento desses cidadãos em face das consequências nefastas dessa gestão pública que durou mais de 20 anos.

Das duas uma: ou é má fé ou é uma questão patológica. Como não me parece razoável presumir que estamos a falar de pirómanos que ateiam o fogo para logo de seguida se armarem em bombeiros, sou obrigado a concluir que se trata de má fé. Aliás, má fé também patente na aprovação, em 1989, dos loteamentos da 2ª Fase da Quinta da Piedade e do Casal da Serra, em 1992, neste caso uma data em que já se sabia quais as opções do PDM, , nomeadamente no que respeitava ao número de pisos, pois em 1993 o PDM foi publicado em Diário da República. De acordo com esse regulamento, não é possível construir mais de 5 pisos na Póvoa. Então o que é que se fez? Autorizaram-se volumetrias superiores àqueles valores, imediatamente antes da entrada em vigor do PDM. Este foi o legado do Partido Comunista Português ao povoenses, perante o silêncio cúmplice dos seus responsáveis locais, que agora vociferam cada vez que se faz uma intervenção que vise requalificar as asneiras com as quais foram, no mínimo, coniventes.

Não posso subscrever o lema que está subjacente a esta atitude: "Quando é feito por nós é bom, quando o mesmo é feito pelos outros é mau". As alegadas superioridades éticas e morais já nos custaram muito caro, e disso temos tristes exemplos na História recente.

Por isso não aceito, enquanto cidadão que procura estar informado e se opõe a qualquer tentativa de rescrever a História, que o Partido Comunista tenha esta atitude. Ou melhor, aceito, porque a democracia parlamentar tem a vantagem de permitir que todos expressem as suas opiniões, mesmo àqueles que são contra a democracia parlamentar. Mas vou combater qualquer tentativa de desinformação e as tácticas de guerrilha habituais.

Hoje, é evidente, temos então um espaço urbano desadequado, ineficiente, espécie de paciente que apesar de muito doente não pode parar. Perante este quadro difícil, são duas as opções. Ou se assumem projectos de requalificação, se assume uma atitude de aceitação da realidade que se tenta mudar, ou não se aceita a realidade. E quando não se aceita a realidade, por muito má que ela seja, o melhor é aproveitar os extensos areais da nossa orla marítima e ir construir castelos de areia. Os jornais dão prémios e ficamos todos contentes.

Temos o concelho que temos, com as condições naturais que temos (entre o rio e a montanha), com as condicionantes que temos (rio, linha férrea, EN10/EN1, A1, A10, CREL e IC11, adutores da EPAL, gasoduto, servidão aeronáutica, etc.), e estas características levaram a que mais de 90% da população do Concelho e praticamente toda a actividade económica se localizassem nesta estreita faixa entre o rio e a A1 e, em parte, em Vialonga.

Esta característica específica do nosso Concelho condiciona, naturalmente, a questão da mobilidade.

Ora, a mobilidade é também a susceptibilidade, a possibilidade de e não uma determinação ou obrigação. Quero dizer com isto que a melhoria das condições de mobilidade deve permitir que os cidadãos tenham o maior número de opções possível e escolham o menos condicionadamente possível. Porque eu não subscrevo as teorias que defendem, pelo menos implicitamente, que o que nos faz falta é um melhor acesso a Lisboa. Claro que um melhor acesso a Lisboa é essencial, mas é também essencial que se desenvolva uma actividade económica no nosso concelho, que se aproveitem todas as suas potencialidades e não, como alguns demagogicamente defendem, torná-lo num "resort" ao bom estilo das Caraíbas, onde a nata da sociedade vem passar os fins-de-semana e paternalizar os autóctones. Devemos fomentar estruturas que permitam a criação de emprego, que aproveitem as potencialidades do nosso espaço, e se queremos retirar de cima de nós o estigma do dormitório suburbano, isso passa também pelo desenvolvimento económico, dentro de padrões de exigência. O Debate sobre a mobilidade não pode ser centrado na premissa da melhor e mais rápida maneira de chegar a Lisboa, porque se gera um paradoxo. Se não tivermos opções, de trabalhar aqui ou noutro sítio, de estudar aqui ou noutro sítio, etc., não estamos a escolher livremente, mas apenas a discutir a maneira mais eficiente de nos juntarmos ao longo carreiro de formigas que diariamente se dirigem para a Grande Cidade.


No conjunto daqueles que aceitam a realidade, que para mim são os que contam, costuma-se fazer uma separação que no meu entender é artificiosa. De um lado temos aqueles de nós que assumiram cargos na Administração, ou para sermos mais abrangentes que assumiram cargos na função política e na função administrativa do Estado. E do outro lado, os restantes. Que pagam impostos e depois vão para casa. Eu não entendo a vida em sociedade assim. Não pondo em causa que aqueles que assumem cargos públicos devem ser responsabilizados, como referi atrás, esse facto não exonera os restantes cidadãos das obrigações decorrentes dessa cidadania.

Nós fomos educados, primeiro, numa cultura de súbditos, depois de povo e ainda não conseguimos interiorizar o que significa ser cidadão. Aceitamos o feixe de direitos, mas recusamos, nem que seja tacitamente, o conjunto de deveres.

Dizer isto não é politicamente correcto, porque aqueles de nós que assumem cargos políticos acham que não se deve incomodar as pessoas, porque como não se consegue dar tudo o que as pessoas desejam, nem nunca se consegue cumprir a totalidade das suas aspirações, não existe legitimidade de exigir às pessoas que cumpram a sua parte.

O pensamento resume-se a isto "Como nós não cumprimos parte das nossas obrigações, não podemos obrigar a outra parte a cumprir as suas"

Ora, isto é errado. Primeiro porque se entrou num ciclo vicioso em que cada um promete mais do que outro. E depois porque a cidadania que se basear na correlação directa e proporcional entre a capacidade individual de pagar impostos e os benefícios sociais que recebemos, em que não exista solidariedade, não é uma verdadeira cidadania.

Aqueles de nós que assumem cargos políticos têm assim que mudar a prática e o discurso.

E sem querer dar lições de política a ninguém, porque apesar de algo convencido julgo ter alguma humildade, gosta de começar por dizer às pessoas que assumam a sua qualidade de cidadãos.

Porque, e retomando o ponto essencial deste debate, se há, como já demonstrei, uma transformação estrutural que também modificou os parâmetros da mobilidade, agravada no nosso caso por uma gestão pública local negligente, estes dois factos não são os únicos condicionantes da nossa qualidade de vida.

Também a atitude individual do cidadão tem reflexos nos espaços públicos e na mobilidade.

No condicionamento da mobilidade nos espaços urbanos, o automóvel tem um papel de destaque que se deve em grande parte à sua sobrevalorização.

Esta advém do subdesenvolvimento (e eu sei que a palavra dói, sobretudo quando se utilizam nokias da última geração) patente no facto de até há relativamente pouco tempo o automóvel ser um bem escasso e ao alcance de poucos. Para muitas gerações e dentro delas para muitas famílias, ter um automóvel era algo impossível. O objecto desejado e socialmente identificado como um símbolo de bem estar está hoje ao alcance da maioria das famílias portuguesas. Eu costumo dizer que hoje glorificamos tanto o automóvel porque não crescemos com ele, fazendo parte do nosso quotidiano e que por isso ainda estamos num período de fruição intensa, miúdos encantados com o brinquedo novo. Espero sinceramente que as próximas gerações considerem o automóvel como apenas mais um bem.

Só que isto tem importantes efeitos na nossa mobilidade e no espaço urbano. E desde logo não consigo entender qual é o fundamento do direito de ocupar o espaço que é de todos com um bem que é meu, o qual tem sobretudo utilidade para mim. Entendo que não existe qualquer direito inderrogável de estacionar na via pública.

Não ponho em causa que todos têm direito a adquirir automóvel, como é óbvio. Mas têm também que assumir os custos inerentes a esse bem. Eu até admito que o crescimento das necessidades de transporte e de mobilidade foi proporcionalmente maior que a oferta disponível, que a distância habitação-emprego aumentou, etc.. Admito o que quiserem. Mas a verdade é que na grande maioria dos casos as pessoas utilizam o transporte individual porque querem, porque a racionalidade liberal é apenas uma fábula. Convenhamos que é um acto de masoquismo utilizar o automóvel nos movimentos pendulares casa-emprego.

Ainda neste âmbito, da ocupação abusiva do espaço público, a nossa freguesia é um exemplo típico de uma certa mentalidade serôdia, em que no que convém se apela para a nossa integração no espaço europeu e por outro lado se continua com comportamentos terceiro-mundistas. Falo evidentemente do parqueamento de camiões Tir, na zona habitacional. Além de constituírem um factor de diminuição na qualidade de vida, um risco para a segurança rodoviária e pedonal, o facto de alguém, que desenvolve uma actividade empresarial, externalizar um custo que devia ser interno (o custo de ter um espaço próprio para parquear os seus veículos) constitui uma violação do direito da concorrência. Felizmente que entre os habitantes da Póvoa não existem muitos pilotos de avião, ou corria o risco de acordar com um Antonov à porta.

Apontei alguns exemplos de factores que condicionam a mobilidade e a gestão dos espaços públicos, mas não quero deixar no ar a ideia de que esse condicionamento é exclusivamente causado pelos exemplos que dei.

A questão é complexa e ficam alguns apontamentos, sem grandes pretensões (e sem prejuízo de posteriores adendas) :

1. "Pesada herança" de uma gestão negligente que caracterizou parte dos anos setenta, a década de oitenta e o início dos anos noventa, sob a égide do Partido Comunista Português;
2. Inexistência de estruturas formais, dotadas de meios técnicos, humanos e financeiros capazes de abordar o problema da mobilidade (só agora estão a ser dados os primeiros passos para a criação da Autoridade Metropolitana de Transportes);
3. Consequente ausência de uma estratégia supra-municipal (porque a mobilidade "ultrapassa" as circunscrições administrativas) capaz de identificar e resolver os problemas metropolitanos de mobilidade;
4. Profusão de entidades que administram as diferentes servidões que condicionam a utilização do território (o que sendo positivo no sentido em que podem garantir a defesa de interesses sociais importantes - a defesa do meio ambiente e dos recursos naturais, por exemplo - não permite uma visão global);
5. Um exercício de cidadania convexa, no qual valorizamos os nossos direitos e minimizamos as nossas obrigações;
6. Um discurso político que muitas vezes legitima e estimula esses comportamentos;
7. A ausência de meios técnicos, humanos e financeiros, além da falta de competência legal, nas estruturas locais de gestão do território, para abordarem a questão da mobilidade, já não digo com eficiência, mas pelo menos com eficácia;

Finalmente gostaria de terminar dizendo que o debate sobre a mobilidade é imenso, começando, por ventura, no passeio que não está rebaixado e que por isso impede a circulação de pessoas com deficiências físicas ou no sinal de trânsito colocado sem critério, continua na questão da hierarquização de vias e desemboca numa rede viária metropolitana e num Plano Metropolitano de Mobilidade.

Mas volto a realçar que tudo isto pressupõe, antes de mais o exercício da cidadania. Com Direitos. Mas também com Deveres.




Póvoa de Santa Iria, 13 de Fevereiro de 2004



CARTA ABERTA A ANTÓNIO NABAIS

Caro António Nabais:

Na passada Sexta-Feira 13, depois de teres ouvido a minha intervenção, acusaste-me de ser "moço de recados". Portanto, na tua opinião, aquelas palavras não eram minhas mas de "alguém" que, não tendo coragem ou não querendo expor-se, me terá utilizado.

Não vou relevar esse juízo porque foi certamente feito num momento de particular comoção. A verdade, a dos factos, dói.

Convenhamos que me conheces o suficiente para saber que eu não tenho muito jeito para moço de recados e que sempre fui educado a pensar pela minha própria cabeça. Nem sempre com os melhores resultados, reconheço, mas errar é humano. No entanto nada do que eu disse na Sexta-Feira (que o Partido Comunista é o principal responsável pelo caos urbanístico em que ambos vivemos) é mentira ou fruto de erro. Existem documentos, assinaturas, fotos. O que está feito, está feito e todos temos que trabalhar para minorar os estragos. Eu entendo que os comunistas povoenses devem um pedido de desculpas à Póvoa e não o pretendo para vos imolar no fogo ou para vos condenar ao Inferno (que como ambos sabemos não existe). Entendo também que sem esse reconhecimento não é possível trabalharmos em conjunto, e muito menos quando vos vejo criticarem despudoradamente o que se faz hoje sem reconhecerem o mal que fizeram ontem. É um princípio de boa fé do qual não abdico. O que é uma pena. Porque eu não sou propriamente fundamentalista e reconheço que tu contribuiste e continuas a contribuir e muito, para a cultura na Póvoa, como reconheço que camaradas teus o fizeram e continuam a fazer. Reconheço por exemplo, que o José Casaleiro é um exemplo com o trabalho que tem feito na APAC. Reconheço também o trabalho do Mário Fontan, nas diversas instituições por onde tem passado. Também isto são factos, como aqueles que referi anteriormente. Já não posso dizer o mesmo de outros camaradas teus, aos quais não conheço qualquer trabalho feito em prol da comunidade, mas assinalo uma vontade de protagonismo pessoal e uma atracção patológica pelos flashs dos jornalistas. Esse é um assunto interno do PCP, no qual eu não me meto.

Também te quero dizer que sempre que tiver oportunidade vou denunciar a situação. Seja nas iniciativas da "sociedade civil", como aquela em que ambos participamos seja noutra qualquer ocasião.

E não tenho qualquer problema em participar em iniciativas como a de Sexta-Feira, organizada pela sociedade civil; ou seja, pelos cidadãos sem qualquer vínculo a organizações formais, como por exemplo, tu próprio (ex-presidente da Junta de Freguesia, deputado municipal, membro da Assembleia de Freguesia), ou o Mário Fontan (membro da Assembleia de Freguesia), ou a Sr.ª Odete Silva (eleita na Assembleia de Freguesia pelo PSD) ou o Sr. Nuno Caroça (membro da estrutura local do PSD). Grande sociedade civil que nós temos!

E continuarei a não ter pejo de intervir, mesmo que muitas das intervenções não sejam de simples cidadãos, mas de pessoas com mandatos políticos, que foi o que aconteceu na última Sexta-Feira, com intervenções dos seguintes "simples cidadãos": o Dr. Pedro Dias (Presidente da Mesa da Assembleia de Freguesia), o Sr.Rui Rei, Vereador na Câmara Municipal, ou o Sr. Carlos Coutinho (Deputado Municipal) ou até o Sr. Nuno Libório (Deputado Municipal), que nem sequer mora na Póvoa. Ou seja, mesmo num jogo viciado à partida. Que em vez de servir para ouvirmos os cidadãos, serve para a promoção pessoal de quem é demasiado medíocre para se destacar pelo contributo que dá à comunidade.

Com a amizade de sempre,

Nuno Augusto



































ÍNDICE


UM APELO CONTRA A INÉRCIA DO SOFÁ
CUIDADO COM O DONO
MEMÓRIA DE ELEFANTE
O SÍNDROMA DA NOVA ZELÂNDIA
O BISNAU
FESTIM DE CANIBAIS
UM GRANDE FURO
FUNGÁGÁ DA BICHARADA
O QUINTAL DO MEU AMIGO ZÉ
O MECENAS
O BOM SAMARITANO
OS ÓRFÃOS DO MURO
O BOATO
O PARADOXO
LÉXICO
FREAK SHOW
EFFICIENTIA IMPERRI (EM LATIM MACARRÓNICO)
LA VALISE DE PANDORA
MAIORIA SILENCIOSA
A DIFÍCIL ARTE DE SER PAI (OU MÃE, QUE NESTES TEMPOS DE FAMÍLIAS MONOPARENTAIS TEMOS QUE SER POLITICAMENTE CORRECTOS)
O DJ PSICÓTICO
CONVERSAS DE CAFÉ
O ÊXTASE NA CAIXA DE CORREIO
SUBLOCAÇÃO
AS ANEDOTAS DO MASCARENHAS (EM DVD, CD E MINIDISC)
O MARAVILHOSO MUNDO LIBERAL
Ú PAIZE DUS DOTORES
PRIMUS INTER PARES
WHO THE HELL IS MICHAEL PORTER?
RAZÃO MÍNIMA GARANTIDA
O PAÍS DOS COMPETENTES

OUTROS TEXTOS

A SERPENTE ADORMECIDA
UMA FAMÍLIA PORTUGUESA
ULTRA-LEVUR
DESMILITARIZAÇÃO, JÁ!
COCKTAIL
PORQUE É QUE EU NÃO VOTO EM ANTÓNIO GUTERRES
OS COMEDORES DE BERINGELAS
OS BISBILHOTEIROS
FUGA PARA A FRENTE
ROMEU E JULIETA É O MELHOR ROMANCE PORQUE OS DOIS NUNCA PARTILHARAM UM T2
O VERDADEIRO ARTISTA
PORTUGAL DOS PEQUENINOS
CRISE? MAS QUAL CRISE?
AS COISAS QUE ME FASCINAM
BCP
POLÉMICA COM ANTÓNIO NABAIS