7/28/2003

Fungágá da Bicharada

A minha crónica de hoje é dedicada aos mais novos. A memória das histórias que me contaram na infância ainda hoje me prega um largo sorriso.

Era uma vez um leão num reino em que os animais falavam. O rei da selva, preocupado com o estado deplorável e subdesenvolvido do seu reino e convencido ainda da responsabilidade sobre os restantes bichos que o seu estatuto de soberano lhe exigia, sentou-se na clareira e pôs-se a pensar sobre o que poderia ser feito para melhorar aquela selva decrépita, de modo a que diversas espécies de animais não a abandonassem. Resolveu, então, pedir conselho ao animal mais sábio de toda a floresta - o mocho. Ora, a sapiência do mocho só era comparável à sua gula, aliás inversamente proporcional ao seu espírito predador. Assim, o mocho aconselhou o leão a entabular conversações com o castor. O castor, animal de aspecto gorduroso e desgrenhado, era, por aqueles sítios, o bicho mais empreendedor, tendo criado com outros castores de selvas limítrofes um acordo relativo à construção de diques, controlando, deste modo, o curso do grande rio. Atento e informado, sempre que algum animal, vítima incauta do seu predador ficava incapacitado nas artes de caça ou da pesca, oferecia-se para ficar com o seu território por truta e meia. Propôs pois ao Rei Leão que este o deixasse construir canais para esses vastos territórios que havia adquirido, de modo a que os bichos em debandada tivessem acesso aos benefícios do rio, comprometendo-se, em troca, a construir ninhos e tocas. Aceitou o leão de bom grado, regozijando-se, discretamente é certo, o anafado mocho, que a seu lado lhe conferia autoridade.
Logo se iniciaram naquela selva pacata, obras para criar os inúmeros canais, ninhos e tocas. Animais de todas as espécies e feitios acorreram àquele lugar, querendo reservar uma toca, um ninho, ou uma simples liana. Começou o castor por pedir dez trutas por cada ninho ou toca, mas vendo a turba que entretanto se tinha aproximado, foi pedindo sucessivamente mais trutas por cada ninho e cada toca, aconselhando os bichos interessados a dirigirem-se ao seu amigo hipopótamo. O amigo hipopótamo era, em toda a selva, o único animal apetrechado para armazenar trutas, pois não só a sua enorme boca lhe permitia apanhar de uma só vez mais trutas que a da maioria dos animais, como também, graças às excelentes relações de amizade que mantinha com o castor, podia escolher as melhores zonas de pescaria no rio.
Faziam filas intermináveis os animais, esperando que o hipopótamo lhes cedesse algumas centenas de trutas, comprometendo-se a devolver-lhe periodicamente um número considerável de trutas, até perfazer o cedido mais umas centenas de trutas. E assim corria, prazenteira, a vida naquela selva. O leão, a princípio contente por ver a sua selva cheia de vida e bulício, tendo-se inclusivamente cercado de uma roda de conselheiros que incluía outros bichos para além do mocho ainda que igualmente indolentes e matreiros, começou a ficar preocupado com as frequentes disputas entre os animais e com a diferença entre os canais acordados e os efectivamente construídos. Consultou então o castor, tendo-lhe este respondido que a lama com que fazia os canais custava cada vez mais trutas, rápido de espírito, propôs de imediato ao leão a feitura de mais cinquenta tocas e cinquenta ninhos, pagando-lhe com algumas dezenas de trutas. Começou o leão por recusar, estabelecendo o limite de vinte e cinco tocas e vinte e cinco ninhos, mais um canal. Respondeu o castor que não, que assim não podia ser e o leão, convencido pelo seu faminto conselho e pressionado pelos animais residentes a construir ele próprio os canais prometidos, aceitou que o castor fizesse quarenta tocas e quarenta ninhos e um pequeno canal. Bem intencionado, o castor prometeu ainda dar uma palavra de abono junto do seu amigo hipopótamo, para que este cedesse ao leão as trutas necessárias para alimentar o seu concelho e construir os canais que o castor, alegadamente não podia fazer.
E assim vivia aquela selva. O castor laborioso continuava a construir e a pedir milhares de trutas por cada abrigo, trutas que os animais não tinham, mas que o hipopótamo cedia a troco de mais trutas ainda, em pagamentos faseados e com o juro de três trutas por cada dez cedidas. O leão, incapaz de controlar a situação, pedia também ele cada vez mais trutas ao hipopótamo, até que, por desígnio da lei natural, morreu.
Em diversas selvas daquele reino, leões chegaram ao trono e em alguns reinos até mesmo leoas, por vezes cheios de ânimo e de vontade em mudar o curso das coisas, mas invariavelmente acabando por se sentar à mesma mesa do rei anterior. Do outro lado da mesa os hipopótamos, os castores e alguns mochos continuavam a ser os mesmos. Cada vez mais anafados, claro!

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