7/28/2003

FESTIM DE CANIBAIS

Meus caros leitores

Estou irreversivelmente fora de moda. Enquanto que a maioria de vós se interessa por ciências e actuais, como a informática, eu, espírito empedernido, tenho-me dedicado a assuntos impregnados de bolor e teias de aranha. Mergulho ávido na investigação arqueológica e como não tenho recursos financeiros para me deslocar à Polinésia, faço do meu quintal um pequeno laboratório. Tenho escavado metodicamente, qual condenado que aproveita todos os momentos para abrir o túnel que o conduzirá à liberdade e aguardo ansioso o primeiro vestígio de antigas civilizações, como o prisioneiro aguarda o cheiro do esgoto que o levará à liberdade.
Está pois o meu quintal transformado numa rede de túneis e buracos, o que tem agradado de sobremaneira aos cães da vizinhança, que voluntariamente me vêm ajudar na empresa, transformando-o numa espécie de Colombo da bicharada. Os meus vizinhos, mesmo desconfiando da minha excentricidade, estão-me agradecidos, pois podem ocupar o seu tempo com coisas mais importantes que passear os seus cães. E eu fico contente e num exercício que roça a esquizofrenia, imagino que aqueles caniches e perdigueiros são jovens e barbudos investigadores que fazem parte da minha imaginária equipa.
À força de tanto escavar e esgravatar, descobri vestígios de uma civilização que faz de Viriato um primo que faleceu ontem. Determinei chamar-se essa civilização Asnónia. e curiosamente apurei também que ocupava o extremo da Península Ibérica.
Eram os asnónios um povo peculiar. Indolentes e acabrunhados, tinham, com o decorrer dos tempos esquecido as artes de amanhar os campos. Como em qualquer sociedade, um grupo restrito de asnónios detinha o poder de executar as deliberações de toda a comunidade, mas a indolência de todos levou a que passassem não só a executar, como a deliberar. A cada vez maior escassez de recursos levou à instituição do canibalismo como a única solução para a sobrevivência da espécie, legitimando esta escolha com o argumento da eugenia da raça, já que os menos aptos, os mais obesos e trôpegos seriam os primeiros a serem devorados.
E assim sucedeu. Organizaram-se caçadas com pompa e circunstância, onde os mais rápidos trucidavam os mais lentos, para entregaram a sua carne aos mais sábios que assistiam, quase cândidos, do alto de promontórios. À medida que a caça se intensificava, novas técnicas foram desenvolvidas, permitindo a morte das presas com o mínimo dano para a sua suculenta carne. Chegou o momento em que pela ausência de presas os caçadores se caçaram a eles mesmos.
Apenas restavam os sábios. E aplicando o mesmo princípio, os mais aptos foram ludibriando os menos aptos, sobrando finalmente apenas um, espécie de iluminado, de criatura reunindo todos os requisitos da perfeição. Tinha apenas um defeito. Estava vivo e consequentemente precisava de se alimentar. Posto perante este dilema decidiu Eugénio (era esse o seu nome) comer-se a si mesmo, empregando toda a sua sabedoria na realização desse objectivo. Preparou cuidadosamente unguentos que lhe permitissem sarar as feridas decorrentes da auto-mutilação. Começou então por comer os dedos dos seus próprios pés, os seus olhos, pois nada no mundo ao seu redor lhe interessava ver e o tacto bastava para se consumir. Comeu as suas pernas, pois não precisava de se deslocar neste estado de auto-suficiência e assim foi avançando, até ser apenas uma língua, um esófago e um estômago em cima de uma cama feita com os seus ossos e morreu no momento em que engoliu o seu próprio coração. Assim terminou a civilização dos asnónios.
Confesso que estas descobertas me deixaram meio angustiado e apenas a inocente certeza de que nós, actuais habitantes do mesmo espaço geográfico, nada temos em comum com os asnónios, me devolveu o ânimo e a confiança.

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