8/01/2003

ROMEU E JULIETA É O MELHOR ROMANCE PORQUE OS DOIS NUNCA PARTILHARAM UM T2

Confesso que o meu título não só é inestético como é também redutor.

Mas nem tanto.

Imaginem que o Romeu não era filho de príncipes venezianos e que a Julieta não pertencia à classe nobiliárquica, de, por exemplo, Florença.

Imaginem que o Romeu era um chavalo que vivia em Santo António dos Cavaleiros, ou no Seixal, ou na Amadora, que aos dez anos teve os seus primeiros ténis Nike, e que bem apessoado, cheio de estilo, trepou a sua adolescência como um bingo em que se faz linha com naturalidade e se ganha o primeiro prémio com um palito ao canto da boca.

Temos então o nosso Romeu, homem feito, dezasseis aninhos de guelra e muito peito, pronto a esclarecer como é que se faz, verdadeiro mestre na arte de bem engatatar, não é gaffe, é o verbo adequado, como adequada é a Julieta, essa miúda de pernas grossas mas esguias, de saias que mostram o suficiente sem serem escabrosas, de peitos salientes na camisola de lã e cabelo apanhado a completar uma cara onde o ligeiro toque de baton finaliza, de forma magistral toda a sua figura.

Temos pois aqui os nossos heróis. E Romeu merece sem dúvida esse epíteto: É simpático, um grande jogador de bola, verdadeira emoção no ginásio quando a Setôra Helena manda pôr a cama elástica e o mesmo se aplica a Julieta; Quantas apostas já correram na turma para saber qual o sortudo que mais se tinha aproximado de ver os seus mamilos? Um carinho dela é a conquista da Normândia, um beijo uma Hiroshima incontrolável.

Claro que todos apostavam no romance, que aguardava apenas uma oportunidade. E diga-se que o código era claro: O Romeu e a Julieta.

Apareceu então aquele bendito passeio a Tomar, com a malta toda na camioneta, a fazer barulho, com o rádio do Mário aos berros, o Carlos a enrolar umas ganzas e o Romeu e a Julieta, sentados lado a lado, a brincarem um com o outro, já a prepararem o terreno para a conclusão mais óbvia.

Tudo correu às mil maravilhas: a setôra Lurdes bebeu que se fartou, fumou uns cigarros e limitava-se a olhar com olhos meio embevecidos meio goraz pescado há três dias, o Romeu convidou a Julieta a dar uma voltinha de barco e no fundo a malta, na margem aplaudiu quando ele largou os remos e se mandou a ela, aplaudiu.

Quando voltámos de Tomar a coisa prometia....o Romeu pôs a mão onde a parte masculina da turma gostava de pôr e a Julieta correspondeu com os devidos fonemas.

Estava pois concretizada a relação preferida, determinada.

O Romeu continuou a jogar à bola, autêntico Maradona dos juniores, a Julieta continuou a dar-lhe um beijo depois dos jogos e aguardava-se apenas que, terminado o 12º ano ele assumisse o seu papel de noivo e de sócio-gerente na loja do pai. Ela, claro, continuaria a estudar, iria tirar um curso superior.

A primeira vez, foi de facto um bocado embaraçosa. Foram ambos para a viagem de finalistas em Marbella e acabou por acontecer, depois de algumas Cubas Libres. Entre suores e espasmos, aconteceu.

Claro que Romeu, jovem coqueluche e sócio-gerente da firma do pai não deixou de participar activamente nas idas ao Sampaio, bares de engate e saídas com destino certo num determinado prédio da Columbano Bordalo Pinheiro.

O ritual repetia-se todos os sábados com o beijo apaixonado dado ás 00.15 a Julieta e a entrada imediata no GTi de meia tigela que estivesse à mão.

Por sua vez, Julieta continuava a frequentar o curso superior de Línguas e Literaturas Românicas. Sempre na expectativa de algo mais que as relações de Sexta à noite no carro, e diga-se à espera que o Rui, seu colega, deixasse Kant a um lado.

O Rui devia estar mesmo apaixonado por Kant, ou então muito distraído. E acabado o curso, colocada numa escola de putos barulhentos e inacessíveis, Julieta estava pronta para casar. O mesmo se diga de Romeu, pois entretanto tinham comprado um T2 perto e nada parecia faltar.

Diga-se que o casamento foi lindo. Aliás, todos os casamentos são lindos. O Romeu de preto, alto, atlético, pantera coxa e ressacada, de pestanas coladas, a Julieta, modelo enfrascado em passos côncavos, e depois o copo de água, com o tio Luís completamente bêbedo a arrastar a tia Rosa e as maquilhagens e perfumes dos convidados a desfazerem-se sucessivamente nas bochechas dos dois, enquanto os envelopes se aninhavam no colo dos dois.

A lua-de-mel é sempre sempre um filme de Walt Disney que se compra com o Rambo IV.

O estranho vem depois, quando se chega a uma cama que teimam em afirmar que é nossa quando nunca lá dormimos. Vem depois com as dúvidas nos passos a tomar quando a casa está às escuras. Quando à mesa não estão as pessoas habituais.

Julieta era, foi e será sempre uma aprendiz exemplar. Mas nunca será uma cozinheira. O que desagradou profundamente a Romeu. Bom, bom era vir do treino e comer o franguinho da mãe Emília, com as batatinhas fritas.

E Romeu, diga-se, nunca será um corredor de fundo. É antes um velocista que percorridos os 100 metros, arfa e extenuado, quer descansar.

Vem depois aquele momento de carinho, em que posta a loiça na máquina, se sentam em frente ao televisor, enroscados quais gatos com o cio, beijinhos nos ombros e no queixo e eis que começa a telenovela, eis que Romeu se levanta e vai ter com a malta ao café, beber a bica e um whisky, fazer um snooker.

Ao fim de semana a coisa melhora, porque tendo a Sport TV, não há jogo que a malta perca em casa do Romeu. Assa-se umas febras, umas entremeadas, abre-se um garrafão que o pai do Toni trouxe da terra e está feito. Se o Benfica ganhar, a malta ainda bebe um Cardhu e depois vai até ao café, para fazer uma cartada.

E assim vão o herói e a miúda mais boa da turma.

Claro que falta aqui um elemento essencial, que é o rebento. Entre tantas corridas de 100 metros, alguma teria que dar um record. Perdão, um recuerdo.

A Julieta ficou então grávida, entre vivas e cumprimentos.

Se a caloria tinha sido nos últimos meses uma companheira, uma camarada das horas más, com a gravidez tornou-se uma espécie de ursinho de peluche que se leva até para a casa de banho e se coloca sentado no bidé.

Romeu por outro lado, carente dos meetings toca e foge voltou às suas amigas eslavas, altas e rosadas, da Columbano, tendo até direito a uma praxe do tipo o bom filho à casa retorna.

Nasceu pois a Cátia Vanessa, espécie de camaleão parecido com todos os familiares que invadiram o T2, beberam o melhor Cardhu das noites de bola e fizeram desaparecer as 3 dúzias de bolos sortidos da pastelaria do Sr. Manel, que a Maria do Carmo, Carminho, mãe da Julieta e sogra do Romeu encomendara, entre conversas sobre carros e conselhos avulsos e absurdos sobre puericultura.

A romaria continuou com o Sr. Guilherme, cliente da loja há mais de 10 anos, respectiva esposa-autotanque e filhos irritantes, o Nesga, o Palitos e o Zeca, amigos das suecadas e das putas, a tia Ondina, que no casamento se lembrou de ter afrontamentos, e até o Rui, colega da Julieta na Faculdade e por acaso, professor na mesma escola.

Depois é que foi o bom e o bonito. Segundo o Romeu, a Cátia Vanessa sai à mãe, chorona; a Julieta achava que saía ao pai, sempre descontente. Vamos a um consenso: a miúda passava as noites a berrar.

Nos primeiros meses Romeu sentiu-se constrangido e mal punha os pés fora de casa. Olhava embevecido a sua filha e incomodado o hipopótamo em que a Julieta se tinha transformado. Bebericava noites fora whisky enquanto trincava amendoins e esporadicamente perguntava como é que tinha corrido o dia às suas duas meninas.

No verão, foram passar 15 dias a casa da tia Margarida, no Algarve, entre fraldas fedorentas e fatos de banho que teimavam em não segurar as mamas de Julieta, onde as provas de 100 metros se transformaram em corridinhas de 50.

Na loja as coisas corriam às mil maravilhas: não havia mulher, nova, recauchutada ou velha que não perguntasse pela Cátia Vanessa e que não felicitasse o pai e que perante um elemento comprovadamente fértil se inibisse de o cumprimentar efusivamente.

Julieta voltou à escola, aos miúdos maioritariamente broncos e ao Rui, essa coisa peganhenta que teimava em apaparicá-la, com a elegância de um morcego em pleno dia na Flórida.

Voltava ao fim da tarde a casa, ia buscar a Cátia Vanessa ao infantário, olhando a cozinha, já arrumada pela empregada, entretendo-se a mudar copos e tupperwares enquanto Romeu não chegava, a tresandar a cerveja e usando o vernáculo como muleta retórica.

Jantavam quais ruminantes em silêncio, excepto a Cátia Vanessa, que teimava em espalhar tudo pela mesa, para grande descontentamento de Romeu, que queria ver o telejornal em paz e olhava fulminante Julieta, sempre que a trajectória dos alimentos projectados pela sua filha coincidiam com o seu espaço aéreo.

Levantava-se, acabado o repasto, exibindo a sua crescente volumetria e feita a higiene dentária manifestava-se com um “estou satisfeito”, aerofagicamente falando, claro, dirigindo-se então para o café, onde eminente, cortava um Ás de Copas com um Duque de Paus.

As já distantes corridas de 100 metros tinham-se transformado em lançamento de peso: O Romeu lançava-se para o lado direito da cama e a Julieta, caía, graciosa, com os seus 77kg, no lado esquerdo da cama. Grande Ernesto, pai de Romeu, homem prevenido que lhes tinha oferecido uma cama robusta.

Se Romeu se contentava com as Irinas e as Natachas da Columbano, nas primeiras sextas do mês contabilístico, Julieta ficava a ver navios, tipo Brad Pitt ou Keanu Reeves, em filmes sucessivamente alugados, refugiada em molotoff’s e sortidos de hipermercado.

Aos domingos iam almoçar a casa dos pais, ou dos sogros, conforme a perspectiva, com uma programação de fazer inveja. Romeu mostrava, orgulhoso, o cartão de sócia do seu clube, desde a nascença, da sua filha, enquanto Julieta abanava os ombros e fazia esgares às inquirições de sua mãe.

Foi então que Julieta, um dia por acaso, num intervalo entre duas aulas, olhou para o Rui e achou que afinal ele não parecia um morcego, quanto muito um marsupial. Foi então que finalmente almoçou com ele fora do refeitório da escola, e que no caminho de volta resolveu masturbá-lo, enquanto o mesmo estrebuchava, suava, o seu cabelo oleoso pingava e quase hirto, teve um orgasmo.

Voltou ao fim da tarde para casa, viu o rinoceronte a entrar, a comer, a manifestar-se ruidosamente e a sair para o café, e deitou-se com um sorriso sereno mas vivo.

No outro dia, saída do banho, conseguiu limpar-se sem voltar costas ao espelho e olhou-se de frente, olhou os pneus e os socalcos que povoavam o seu corpo e lembrou-se dos seus seios outrora rijos e proeminentes.

Limpou-se, vestiu-se, perfumou-se, passou um perlimpimpim pela cara e foi para a escola, sentindo em uníssono o roncar do motor e o seu ronronar.



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