8/02/2003

OS BISBILHOTEIROS




Ao longo da nossa existência enquanto cultura e civilização, muitos autores, bem mais sábios e cultos que eu, discorreram sobre uma peculiar característica dos portugueses: a bisbilhotice. E associada a esta irresistível tendência para espiolhar a vida alheia vem naturalmente associada uma outra: a desconfiança.

Os portugueses são bisbilhoteiros e por isso mesmo desconfiados, pois a nossa visão do mundo é sempre um reflexo de nós mesmos.

Durante décadas, o regime autoritário exerceu uma "fiscalização" que arbitrariamente misturava vida privada com vida íntima. O Portugal democrático teve alguma dificuldade, para não dizer muita, em aceitar qualquer tipo de fiscalização, mesmo aquela vinculada à lei.

Existem duas ideias sobre as quais convêm fazer alguns esclarecimentos, por muito óbvios que eles sejam. O primeiro prende-se com a necessidade de fiscalização em qualquer sistema social e sobretudo num sistema democrático: é um dos únicos garantes do seu funcionamento e da sua justiça. Não por má fé ou por desconfiança dos outros, mas pela assunção da natureza humana e da sua falibilidade e imperfeição. O fito solidário do próprio conceito de sociedade implica a criação de mecanismos que permitam a essa sociedade aferir as relações entre aqueles que a compõem. A segunda refere-se à confusão que existe entre vida íntima e vida privada. Se eu gosto mais de bacalhau com batatas ou de cozido à portuguesa é do meu foro íntimo e não tem qualquer repercussão directa no convívio social. Se eu tenho um rendimento mensal de 1.000 ou 10.000 euros, esse facto diz directamente respeito à restante sociedade, porque o meu contrato de cidadania implica que contribua proporcionalmente para essa mesma sociedade. Numa sociedade alicerçada no sucesso material (seja o que isso for), este argumento é muitas vezes o argumento da inveja, da utilização perversa por parte de quem se sente afastado desse sucesso, com dolo. Mas a má utilização desse princípio não belisca em nada a sua justeza e a sua necessidade.

Hoje, ninguém fiscaliza ninguém, e o cobertor de fino algodão que deveria ser a fiscalização num regime democrático da sua própria democraticidade e adequação aos fins é uma áspera manta de retalhos da qual todos procuram afastar a sua pueril e virgem cútis.

Em vez de nos fiscalizarmos uns aos outros, de forma transparente e recíproca, pré-determinada, em que o fiscal seja fiscalizado, entrámos no campo da pura bisbilhotice.

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