8/02/2003

OS COMEDORES DE BERINGELAS



Vou hoje falar-vos de um tema que me é particularmente caro. A gastronomia. Um dos meus mais frequentes devaneios esquizofrénicos consiste em imaginar que a minha missão neste mundo é a de enchê-lo com McSilvas. Imagino-me hoje em Budapeste, amanhã em Hong-Kong, a inaugurar McSilvas, onde as Happy Meals trazem uma canja de galinha e biscoitos com um travo a erva doce e a ementa principal são sandes de torresmos. Mas não é com os meus devaneios que quero utilizar os 2.000 caracteres que o "Triângulo" graciosamente me concede.

Esta crónica aborda um tipo muito especial de concidadãos. Os comedores de beringelas. Esse tipo de cidadãos tem uma predilecção muito particular por beringelas. Esse gosto não é muito bem aceite pela restante comunidade. Na verdade, sempre existiram comedores de beringelas. Não sei se é por predisposição genética, por hábito ou por opção. Nem é essa a questão fulcral.

Sentindo-se discriminados, os comedores de beringelas criaram entre si um pacto, um código de conduta, supostamente para fazerem face a essa discriminação. Entenda-se que os comedores de beringelas não são proscritos, nem deixam de existir brilhantes médicos só porque comem beringelas, dedicados políticos, ponderados juízes. Como aliás existem políticos católicos, médicos vegetarianos, directores-gerais sportinguistas ou soldadores abstémios.

Ora, com o pretexto de corrigirem essa discriminação, os comedores de beringelas passaram a utilizar esse facto como único critério sempre que a sociedade em geral lhes concedia algum poder de decisão. Assim, sempre que era preciso escolher alguém para desempenhar um determinado cargo ou para usufruir de um direito concreto, os decisores beringélicos deixaram de ter em conta a competência, a preparação técnica, a vocação ou a necessidade. O único critério prevalecente era a particularidade de apreciação de beringelas. Quem não gostasse de beringelas estaria automaticamente afastado de uma determinada atribuição, independentemente de ser o mais competente nessa matéria. Ora, isto é discriminação. A mesma discriminação que supostamente estaria na origem do pacto entre os beringelivoros. beringela

Fica assim demonstrado que ao contrário do que muitos afirmam, não são os comedores de beringelas nenhuma espécie de iluminados. Não são aliás nenhuma espécie. E regem-se pelos mesmos padrões mentais da restante sociedade.

Tudo isto seria amenizado se o gosto por beringelas fosse aceite pelos que não comem beringelas. No entanto a aceitação não se decreta, não se impõe, quanto muito incute-se.

E curiosamente muitos dos comedores de beringelas seriam os primeiros a reagir contra essa aceitação, pois isso implicaria o fim do tratamento privilegiado e obrigaria a que fossem vistos à luz das suas capacidades enquanto seres humanos e cidadãos e não simplesmente pela prodigalidade no consumo do fruto.

E muita mediocridade viria ao de cima, muitos beringelómanos perderiam poder, pois ao contrário do que alguns afirmam, a beringela não possui nenhuma substância alucinogénea na sua composição, que torne os seus comedores especialmente brilhantes ou sensíveis.

Sem comentários: