8/21/2003

POR QUE É QUE EU NÃO VOTO EM ANTÓNIO GUTERRES





Enquanto o PSD se entretém com o Prof. Cavaco e o DJ de serviço Santana Lopes, o PS mantém-se silencioso, com a desculpa de que "ainda é cedo". Na verdade ninguém quer fazer a pergunta embaraçosa: vai o PS apoiar o Eng.º António Guterres?

Parafraseando o supracitado Prof. Cavaco: eu não tenho dúvidas. E quando não tenho dúvidas é evidentemente mau sinal. Não tenho dúvidas porque tenho memória e lembro-me perfeitamente do Eng.º António Guterres.

O Eng.º António Guterres chegou ao Poder, por mérito próprio, sem dúvida e teve não o pássaro, mas a gaiola toda na mão. Comprometeu-se com milhões de portugueses e fugiu.

Pela primeira vez no regime democrático o Partido Socialista chegou ao Poder sozinho com um Primeiro-Ministro esclarecido e inteligente. E o trágico da situação é isso mesmo. António Guterres é um homem inteligente e esclarecido, não um tecnocrata com meia dúzia de dogmas mal aprendidos.

Percebeu na perfeição os problemas do País ou como se diz agora, fez o diagnóstico correcto da situação.

Percebeu que o País tinha que investir de forma séria na educação e declarou-se apaixonado. A paixão foi fugaz. Guterres deixou-a entregue a meia dúzia de presunçosos incompetentes que se regeram pelo princípio que enuncia: o menino não sabe ler? Não faz mal. Veja os bonecos que nós vamos contratar os melhores ilustradores do mercado.

E sobretudo alimentou os vícios situacionistas instalados. Passou o tempo a almoçar com "lobbies", inspirado pelo ecumenismo da Terceira Via. Foi incapaz de incomodar os interesses que se degladiam na Saúde, na Construção Civil e Obras Públicas, de tornar justo o contributo que cada português dá, através dos impostos. Com o devido respeito, o Primeiro-Ministro mais parecia um qualquer monarca, desfilando pela avenida, sorrindo à esquerda e piscando o olho à direita, sendo recebido no fim por um conjunto de acólitos que entre palmadinhas nas costas e a outra mão discretamente estendida, elogiavam o seu desempenho. Continuou a engordar a máquina do Estado com despudor e incapaz de alterar comportamentos, só com um custo desproporcionado conseguiu melhorar as condições de vida do País. Porque, sejamos objectivos: nem todos os resultados foram maus. Ajudado pela competência e empenho do seu amigo Ferro Rodrigues (que deixou no pântano) conseguiu criar os fundamentos de uma verdadeira Segurança Social, fez um trabalho ímpar em termos de diplomacia em conjunto com Jaime Gama e libertou o País de grande parte das pinceladas latino-americanas coadjuvado pelo eng.º Sócrates.

No entanto, não teve a coragem política para ir ao fulcro da questão. Achou que era possível mudar sem se mexer nos fundamentos da inércia. Cada vez que um qualquer grupelho fazia uma reivindicação, Guterres mandava-os entrar no seu gabinete, de onde saíam saciados. Em seis anos a Administração Pública não passou a funcionar melhor. Pode ter obtido, eventualmente, melhores resultados, mas sempre à custa de injecções dopantes, nunca de uma verdadeira reforma. E o mesmo se passou noutras áreas.
Pergunta-se: mas o que é que isso tem a ver com a Presidência da República? Tem tudo e não tem nada.

Se achar que o Presidente da República desempenha o papel de um pai, que à lareira dá sermões aos seus filhos estouvados e serenamente se vai deitar, vote em António Guterres. Se pelo contrário acha que o Presidente da República é uma figura fulcral no nosso sistema político e de governo aconselho-o a ponderar bem o seu sentido de voto.

Diz-se muitas vezes que a escolha do Presidente da República se reconduz à escolha da personalidade mais adequada. É precisamente isso. António Guterres revelou uma personalidade sem coragem política, incapaz de afrontar os interesses instalados e cedeu sempre que foi pressionado. Saiu do pântano que ele próprio tinha criado com o ar angelical de sempre, deixando toda a gente a afundar-se lentamente.

Ora, eu não quero um cobarde político na Presidência da República, por muito simpático e inteligente que seja. Ou até por isso mesmo. Logo, não vou votar em António Guterres.



Póvoa de Santa Iria, 21 de Agosto de 2003



Nuno Augusto


Texto disponível em http://detrasdoreposteiro.blogspot.com e http://detrasdoreposteiro.no.sapo.pt

8/05/2003

Estou a fazer uma página em http://detrasdoreposteiro.no.sapo.pt

8/02/2003

OS COMEDORES DE BERINGELAS



Vou hoje falar-vos de um tema que me é particularmente caro. A gastronomia. Um dos meus mais frequentes devaneios esquizofrénicos consiste em imaginar que a minha missão neste mundo é a de enchê-lo com McSilvas. Imagino-me hoje em Budapeste, amanhã em Hong-Kong, a inaugurar McSilvas, onde as Happy Meals trazem uma canja de galinha e biscoitos com um travo a erva doce e a ementa principal são sandes de torresmos. Mas não é com os meus devaneios que quero utilizar os 2.000 caracteres que o "Triângulo" graciosamente me concede.

Esta crónica aborda um tipo muito especial de concidadãos. Os comedores de beringelas. Esse tipo de cidadãos tem uma predilecção muito particular por beringelas. Esse gosto não é muito bem aceite pela restante comunidade. Na verdade, sempre existiram comedores de beringelas. Não sei se é por predisposição genética, por hábito ou por opção. Nem é essa a questão fulcral.

Sentindo-se discriminados, os comedores de beringelas criaram entre si um pacto, um código de conduta, supostamente para fazerem face a essa discriminação. Entenda-se que os comedores de beringelas não são proscritos, nem deixam de existir brilhantes médicos só porque comem beringelas, dedicados políticos, ponderados juízes. Como aliás existem políticos católicos, médicos vegetarianos, directores-gerais sportinguistas ou soldadores abstémios.

Ora, com o pretexto de corrigirem essa discriminação, os comedores de beringelas passaram a utilizar esse facto como único critério sempre que a sociedade em geral lhes concedia algum poder de decisão. Assim, sempre que era preciso escolher alguém para desempenhar um determinado cargo ou para usufruir de um direito concreto, os decisores beringélicos deixaram de ter em conta a competência, a preparação técnica, a vocação ou a necessidade. O único critério prevalecente era a particularidade de apreciação de beringelas. Quem não gostasse de beringelas estaria automaticamente afastado de uma determinada atribuição, independentemente de ser o mais competente nessa matéria. Ora, isto é discriminação. A mesma discriminação que supostamente estaria na origem do pacto entre os beringelivoros. beringela

Fica assim demonstrado que ao contrário do que muitos afirmam, não são os comedores de beringelas nenhuma espécie de iluminados. Não são aliás nenhuma espécie. E regem-se pelos mesmos padrões mentais da restante sociedade.

Tudo isto seria amenizado se o gosto por beringelas fosse aceite pelos que não comem beringelas. No entanto a aceitação não se decreta, não se impõe, quanto muito incute-se.

E curiosamente muitos dos comedores de beringelas seriam os primeiros a reagir contra essa aceitação, pois isso implicaria o fim do tratamento privilegiado e obrigaria a que fossem vistos à luz das suas capacidades enquanto seres humanos e cidadãos e não simplesmente pela prodigalidade no consumo do fruto.

E muita mediocridade viria ao de cima, muitos beringelómanos perderiam poder, pois ao contrário do que alguns afirmam, a beringela não possui nenhuma substância alucinogénea na sua composição, que torne os seus comedores especialmente brilhantes ou sensíveis.

MEMÓRIA DE ELEFANTE



Caros leitores,

Vem hoje à liça uma das minhas (recentes) actividades, que se prende com a investigação sobre História. Nessa pesquisa, que me tem levado de biblioteca em biblioteca, de instituto em instituto, descobri uma pequena história que não resisto a transcrever nas páginas do "Triângulo"
:lá na selva

Era uma vez, há muitos, muitos anos, um belo reino situado na encosta de uma pequena montanha, espraiando-se na margem norte do estuário de um belo rio. Em certa ocasião, chegou a esse reino um jovem mancebo, pequeno no tamanho, mas grande na altivez e decidido nas atitudes, honrando a tradição daquelas terras, onde os jovens varões desafiavam, de mãos nuas e peito aberto, as bestas que dominavam os imensos pastos. Num ápice o jovem tomou o poder e logo concedeu forais, procurando assim repovoar o reino. Apoiado pelos seus apaniguados, que se reviam na sua força interior, o jovem príncipe foi fortalecendo o seu poder e continuou a distribuir foros e benesses, transformando grande parte do seu reino outrora bucólico num imenso emaranhado de altos e monolíticos castelos de betão, onde acorriam milhares de estrangeiros, fascinados pela possibilidade de trocarem as suas modestas casas por um lugar num castelo. Homem de cultura, o outrora jovem mancebo promoveu concursos de gastronomia, onde com aparente satisfação, os seus apoiantes deglutiam aquela que se tornou a iguaria do reino: o sapo vivo. Num pequeno mas populoso condado do sul do reino começaram a surgir vozes em discordância com a política de construção de castelos atrás de castelos, à frente, dos lados, por cima, por baixo. Não se intimidou o monarca com tal aleivosia e ordenou que mais castelos fossem erigidos. Ripostaram os homens-bons desse condado que se estava a tornar impossível estacionar os milhares de carruagens que convergiam para aqueles lados, que os mestres não possuíam academias para ensinarem os jovens alunos nas artes e nos ofícios e que a décima daquele lugar não era aplicada em benfeitorias necessárias àquela população. Despeitado, o monarca respondeu com o desprezo por aquela parte do reino. Por esta altura, alguns dos comensais, incapazes de deglutir os batráquios cada vez mais volumosos, abandonaram a mesa, descobrindo-se então que se alguns comiam sapos, outros comiam iguarias bem mais aprazíveis, num cenário orwelliano. Começando nessa pequeno condado do sul, a revolta foi lentamente crescendo, alastrando-se, entre sussurros e abraços cúmplices, até ao dia em que no decorrer de um torneio que se realizava tradicionalmente de quatro em quatro anos naquele reino, o outrora jovem e garboso mancebo foi derrotado por uma donzela de voz suave mas firme de intentos, que numa estocada, o derrubou do cavalo, com um golpe certeiro na genitália, deixando-o prostrado no terreiro, perante o espanto de muitos, o júbilo de outros e o secreto contentamento de alguns. Chegara ao fim o seu reinado.

OS BISBILHOTEIROS




Ao longo da nossa existência enquanto cultura e civilização, muitos autores, bem mais sábios e cultos que eu, discorreram sobre uma peculiar característica dos portugueses: a bisbilhotice. E associada a esta irresistível tendência para espiolhar a vida alheia vem naturalmente associada uma outra: a desconfiança.

Os portugueses são bisbilhoteiros e por isso mesmo desconfiados, pois a nossa visão do mundo é sempre um reflexo de nós mesmos.

Durante décadas, o regime autoritário exerceu uma "fiscalização" que arbitrariamente misturava vida privada com vida íntima. O Portugal democrático teve alguma dificuldade, para não dizer muita, em aceitar qualquer tipo de fiscalização, mesmo aquela vinculada à lei.

Existem duas ideias sobre as quais convêm fazer alguns esclarecimentos, por muito óbvios que eles sejam. O primeiro prende-se com a necessidade de fiscalização em qualquer sistema social e sobretudo num sistema democrático: é um dos únicos garantes do seu funcionamento e da sua justiça. Não por má fé ou por desconfiança dos outros, mas pela assunção da natureza humana e da sua falibilidade e imperfeição. O fito solidário do próprio conceito de sociedade implica a criação de mecanismos que permitam a essa sociedade aferir as relações entre aqueles que a compõem. A segunda refere-se à confusão que existe entre vida íntima e vida privada. Se eu gosto mais de bacalhau com batatas ou de cozido à portuguesa é do meu foro íntimo e não tem qualquer repercussão directa no convívio social. Se eu tenho um rendimento mensal de 1.000 ou 10.000 euros, esse facto diz directamente respeito à restante sociedade, porque o meu contrato de cidadania implica que contribua proporcionalmente para essa mesma sociedade. Numa sociedade alicerçada no sucesso material (seja o que isso for), este argumento é muitas vezes o argumento da inveja, da utilização perversa por parte de quem se sente afastado desse sucesso, com dolo. Mas a má utilização desse princípio não belisca em nada a sua justeza e a sua necessidade.

Hoje, ninguém fiscaliza ninguém, e o cobertor de fino algodão que deveria ser a fiscalização num regime democrático da sua própria democraticidade e adequação aos fins é uma áspera manta de retalhos da qual todos procuram afastar a sua pueril e virgem cútis.

Em vez de nos fiscalizarmos uns aos outros, de forma transparente e recíproca, pré-determinada, em que o fiscal seja fiscalizado, entrámos no campo da pura bisbilhotice.

FUGA PARA A FRENTE





Recentemente, ouvi um número espantoso. No seu conjunto, os Planos Directores Municipais prevêem espaços para habitação que daria para 50 milhões de pessoas!

Num país que tem uma taxa de crescimento populacional perto do zero e profundas assimetrias entre o espaço urbano e o rural, este desvairo diz muito sobre a responsabilidade de eleitores e eleitos.

Não tenho qualquer intenção de produzir libelos demagógicos contra os autarcas. Repito o que já disse: não acredito que os autarcas sejam um conjunto de condenados britânicos a caminho da Austrália, que por desorientação do piloto do navio tenham aportado no ponto mais ocidental da Europa.

No meio da orgia programática da Constituição de 1976, a Autonomia Local parecia ter finalmente espaço para germinar. Só que por baixo da beleza pictórica do Portugal dos Pequeninos construído pelo Dr. Oliveira Salazar estava um país profundamente atrasado, esvaído numa guerra estúpida e numa emigração em massa. E no frémito da construção de um país evoluído, as autarquias locais foram ficando com as cascas de melão. Perante a necessidade de criarem as infra-estruturas mais básicas nas suas autarquias e na ausência de meios para tal fim, as autarquias procuraram financiamento nos privados. E uma simples assinatura passou a significar muito. Dinheiro a curto prazo para os autarcas e uma exponencial valorização de terrenos para os proprietários de terrenos. Vejamos um exemplo prático: a câmara municipal A tem a necessidade de criar infra-estruturas para 1000 munícipes, e como não tem verbas para tal, financia-se com o dinheiro proveniente da autorização da construção de mais 1000 fogos. No fim desta operação tem as infra-estruturas criadas para 1000 pessoas, mas outro problema: mais 3000 habitantes. Solução? Autorizam-se mais 2000 fogos. Há 30 anos que andamos a fugir para a frente, com a agravante de os problemas gerados pela concentração das populações serem mais do que proporcionais a esse crescimento.

O leitor atento poderá notar que muitas vezes são precisamente aqueles autarcas que mais desbragadamente seguiram esta política de autorização selvagem que têm popularidade e que "limpam" maiorias absolutas em clima de festa, entre sardinhadas e distribuição gratuita de torradeiras e moinhos de café. Deverá então o leitor aproveitar essa capacidade de observação para recuar 40 anos e para perceber o nível de exigência das populações em relação aos seus eleitos. Para se lembrar (ou para tomar conhecimento) de um país sem água canalizada em muitas casas, sem electricidade, de milhares de dedos indicadores da mão (direita, claro) a servirem de assinatura. Imagine ou lembre-se de um país sem jipes nem gt's, mas cheio de pasteleiras às soleiras das portas ou, no caso dos mais afortunados, dessa maravilha do design conhecida por v5. E pondere o grau de informação e de exigência dos retratados neste quadro, mesmo depois de 40 anos. Pondere bem, e não faça como o nosso ex-primeiro ministro eng. António Guterres, que um dia, em plena Assembleia da República, aferiu o grau de desenvolvimento do País pelo número de telemóveis, desaparecendo, meses depois, engolido pelo pântano do que o próprio criara, enquanto respondia a um sms.

Precisamos de cidadãos atentos, informados, que não se fechem em casulos, que não se fascinem com discursos pungentes e efeitos especiais. E precisamos de autarcas que parem de correr, que parem de fugir, que tenham a coragem de dizer não.

8/01/2003

ROMEU E JULIETA É O MELHOR ROMANCE PORQUE OS DOIS NUNCA PARTILHARAM UM T2

Confesso que o meu título não só é inestético como é também redutor.

Mas nem tanto.

Imaginem que o Romeu não era filho de príncipes venezianos e que a Julieta não pertencia à classe nobiliárquica, de, por exemplo, Florença.

Imaginem que o Romeu era um chavalo que vivia em Santo António dos Cavaleiros, ou no Seixal, ou na Amadora, que aos dez anos teve os seus primeiros ténis Nike, e que bem apessoado, cheio de estilo, trepou a sua adolescência como um bingo em que se faz linha com naturalidade e se ganha o primeiro prémio com um palito ao canto da boca.

Temos então o nosso Romeu, homem feito, dezasseis aninhos de guelra e muito peito, pronto a esclarecer como é que se faz, verdadeiro mestre na arte de bem engatatar, não é gaffe, é o verbo adequado, como adequada é a Julieta, essa miúda de pernas grossas mas esguias, de saias que mostram o suficiente sem serem escabrosas, de peitos salientes na camisola de lã e cabelo apanhado a completar uma cara onde o ligeiro toque de baton finaliza, de forma magistral toda a sua figura.

Temos pois aqui os nossos heróis. E Romeu merece sem dúvida esse epíteto: É simpático, um grande jogador de bola, verdadeira emoção no ginásio quando a Setôra Helena manda pôr a cama elástica e o mesmo se aplica a Julieta; Quantas apostas já correram na turma para saber qual o sortudo que mais se tinha aproximado de ver os seus mamilos? Um carinho dela é a conquista da Normândia, um beijo uma Hiroshima incontrolável.

Claro que todos apostavam no romance, que aguardava apenas uma oportunidade. E diga-se que o código era claro: O Romeu e a Julieta.

Apareceu então aquele bendito passeio a Tomar, com a malta toda na camioneta, a fazer barulho, com o rádio do Mário aos berros, o Carlos a enrolar umas ganzas e o Romeu e a Julieta, sentados lado a lado, a brincarem um com o outro, já a prepararem o terreno para a conclusão mais óbvia.

Tudo correu às mil maravilhas: a setôra Lurdes bebeu que se fartou, fumou uns cigarros e limitava-se a olhar com olhos meio embevecidos meio goraz pescado há três dias, o Romeu convidou a Julieta a dar uma voltinha de barco e no fundo a malta, na margem aplaudiu quando ele largou os remos e se mandou a ela, aplaudiu.

Quando voltámos de Tomar a coisa prometia....o Romeu pôs a mão onde a parte masculina da turma gostava de pôr e a Julieta correspondeu com os devidos fonemas.

Estava pois concretizada a relação preferida, determinada.

O Romeu continuou a jogar à bola, autêntico Maradona dos juniores, a Julieta continuou a dar-lhe um beijo depois dos jogos e aguardava-se apenas que, terminado o 12º ano ele assumisse o seu papel de noivo e de sócio-gerente na loja do pai. Ela, claro, continuaria a estudar, iria tirar um curso superior.

A primeira vez, foi de facto um bocado embaraçosa. Foram ambos para a viagem de finalistas em Marbella e acabou por acontecer, depois de algumas Cubas Libres. Entre suores e espasmos, aconteceu.

Claro que Romeu, jovem coqueluche e sócio-gerente da firma do pai não deixou de participar activamente nas idas ao Sampaio, bares de engate e saídas com destino certo num determinado prédio da Columbano Bordalo Pinheiro.

O ritual repetia-se todos os sábados com o beijo apaixonado dado ás 00.15 a Julieta e a entrada imediata no GTi de meia tigela que estivesse à mão.

Por sua vez, Julieta continuava a frequentar o curso superior de Línguas e Literaturas Românicas. Sempre na expectativa de algo mais que as relações de Sexta à noite no carro, e diga-se à espera que o Rui, seu colega, deixasse Kant a um lado.

O Rui devia estar mesmo apaixonado por Kant, ou então muito distraído. E acabado o curso, colocada numa escola de putos barulhentos e inacessíveis, Julieta estava pronta para casar. O mesmo se diga de Romeu, pois entretanto tinham comprado um T2 perto e nada parecia faltar.

Diga-se que o casamento foi lindo. Aliás, todos os casamentos são lindos. O Romeu de preto, alto, atlético, pantera coxa e ressacada, de pestanas coladas, a Julieta, modelo enfrascado em passos côncavos, e depois o copo de água, com o tio Luís completamente bêbedo a arrastar a tia Rosa e as maquilhagens e perfumes dos convidados a desfazerem-se sucessivamente nas bochechas dos dois, enquanto os envelopes se aninhavam no colo dos dois.

A lua-de-mel é sempre sempre um filme de Walt Disney que se compra com o Rambo IV.

O estranho vem depois, quando se chega a uma cama que teimam em afirmar que é nossa quando nunca lá dormimos. Vem depois com as dúvidas nos passos a tomar quando a casa está às escuras. Quando à mesa não estão as pessoas habituais.

Julieta era, foi e será sempre uma aprendiz exemplar. Mas nunca será uma cozinheira. O que desagradou profundamente a Romeu. Bom, bom era vir do treino e comer o franguinho da mãe Emília, com as batatinhas fritas.

E Romeu, diga-se, nunca será um corredor de fundo. É antes um velocista que percorridos os 100 metros, arfa e extenuado, quer descansar.

Vem depois aquele momento de carinho, em que posta a loiça na máquina, se sentam em frente ao televisor, enroscados quais gatos com o cio, beijinhos nos ombros e no queixo e eis que começa a telenovela, eis que Romeu se levanta e vai ter com a malta ao café, beber a bica e um whisky, fazer um snooker.

Ao fim de semana a coisa melhora, porque tendo a Sport TV, não há jogo que a malta perca em casa do Romeu. Assa-se umas febras, umas entremeadas, abre-se um garrafão que o pai do Toni trouxe da terra e está feito. Se o Benfica ganhar, a malta ainda bebe um Cardhu e depois vai até ao café, para fazer uma cartada.

E assim vão o herói e a miúda mais boa da turma.

Claro que falta aqui um elemento essencial, que é o rebento. Entre tantas corridas de 100 metros, alguma teria que dar um record. Perdão, um recuerdo.

A Julieta ficou então grávida, entre vivas e cumprimentos.

Se a caloria tinha sido nos últimos meses uma companheira, uma camarada das horas más, com a gravidez tornou-se uma espécie de ursinho de peluche que se leva até para a casa de banho e se coloca sentado no bidé.

Romeu por outro lado, carente dos meetings toca e foge voltou às suas amigas eslavas, altas e rosadas, da Columbano, tendo até direito a uma praxe do tipo o bom filho à casa retorna.

Nasceu pois a Cátia Vanessa, espécie de camaleão parecido com todos os familiares que invadiram o T2, beberam o melhor Cardhu das noites de bola e fizeram desaparecer as 3 dúzias de bolos sortidos da pastelaria do Sr. Manel, que a Maria do Carmo, Carminho, mãe da Julieta e sogra do Romeu encomendara, entre conversas sobre carros e conselhos avulsos e absurdos sobre puericultura.

A romaria continuou com o Sr. Guilherme, cliente da loja há mais de 10 anos, respectiva esposa-autotanque e filhos irritantes, o Nesga, o Palitos e o Zeca, amigos das suecadas e das putas, a tia Ondina, que no casamento se lembrou de ter afrontamentos, e até o Rui, colega da Julieta na Faculdade e por acaso, professor na mesma escola.

Depois é que foi o bom e o bonito. Segundo o Romeu, a Cátia Vanessa sai à mãe, chorona; a Julieta achava que saía ao pai, sempre descontente. Vamos a um consenso: a miúda passava as noites a berrar.

Nos primeiros meses Romeu sentiu-se constrangido e mal punha os pés fora de casa. Olhava embevecido a sua filha e incomodado o hipopótamo em que a Julieta se tinha transformado. Bebericava noites fora whisky enquanto trincava amendoins e esporadicamente perguntava como é que tinha corrido o dia às suas duas meninas.

No verão, foram passar 15 dias a casa da tia Margarida, no Algarve, entre fraldas fedorentas e fatos de banho que teimavam em não segurar as mamas de Julieta, onde as provas de 100 metros se transformaram em corridinhas de 50.

Na loja as coisas corriam às mil maravilhas: não havia mulher, nova, recauchutada ou velha que não perguntasse pela Cátia Vanessa e que não felicitasse o pai e que perante um elemento comprovadamente fértil se inibisse de o cumprimentar efusivamente.

Julieta voltou à escola, aos miúdos maioritariamente broncos e ao Rui, essa coisa peganhenta que teimava em apaparicá-la, com a elegância de um morcego em pleno dia na Flórida.

Voltava ao fim da tarde a casa, ia buscar a Cátia Vanessa ao infantário, olhando a cozinha, já arrumada pela empregada, entretendo-se a mudar copos e tupperwares enquanto Romeu não chegava, a tresandar a cerveja e usando o vernáculo como muleta retórica.

Jantavam quais ruminantes em silêncio, excepto a Cátia Vanessa, que teimava em espalhar tudo pela mesa, para grande descontentamento de Romeu, que queria ver o telejornal em paz e olhava fulminante Julieta, sempre que a trajectória dos alimentos projectados pela sua filha coincidiam com o seu espaço aéreo.

Levantava-se, acabado o repasto, exibindo a sua crescente volumetria e feita a higiene dentária manifestava-se com um “estou satisfeito”, aerofagicamente falando, claro, dirigindo-se então para o café, onde eminente, cortava um Ás de Copas com um Duque de Paus.

As já distantes corridas de 100 metros tinham-se transformado em lançamento de peso: O Romeu lançava-se para o lado direito da cama e a Julieta, caía, graciosa, com os seus 77kg, no lado esquerdo da cama. Grande Ernesto, pai de Romeu, homem prevenido que lhes tinha oferecido uma cama robusta.

Se Romeu se contentava com as Irinas e as Natachas da Columbano, nas primeiras sextas do mês contabilístico, Julieta ficava a ver navios, tipo Brad Pitt ou Keanu Reeves, em filmes sucessivamente alugados, refugiada em molotoff’s e sortidos de hipermercado.

Aos domingos iam almoçar a casa dos pais, ou dos sogros, conforme a perspectiva, com uma programação de fazer inveja. Romeu mostrava, orgulhoso, o cartão de sócia do seu clube, desde a nascença, da sua filha, enquanto Julieta abanava os ombros e fazia esgares às inquirições de sua mãe.

Foi então que Julieta, um dia por acaso, num intervalo entre duas aulas, olhou para o Rui e achou que afinal ele não parecia um morcego, quanto muito um marsupial. Foi então que finalmente almoçou com ele fora do refeitório da escola, e que no caminho de volta resolveu masturbá-lo, enquanto o mesmo estrebuchava, suava, o seu cabelo oleoso pingava e quase hirto, teve um orgasmo.

Voltou ao fim da tarde para casa, viu o rinoceronte a entrar, a comer, a manifestar-se ruidosamente e a sair para o café, e deitou-se com um sorriso sereno mas vivo.

No outro dia, saída do banho, conseguiu limpar-se sem voltar costas ao espelho e olhou-se de frente, olhou os pneus e os socalcos que povoavam o seu corpo e lembrou-se dos seus seios outrora rijos e proeminentes.

Limpou-se, vestiu-se, perfumou-se, passou um perlimpimpim pela cara e foi para a escola, sentindo em uníssono o roncar do motor e o seu ronronar.