Nestes dias em que a geração filha do welfare state está comodamente instalada no poder, recordo-me de António Guterres. Recordar-me de António Guterres é mau por duas razões: primeiro porque implicitamente lhe estou a passar uma certidão de óbito político (só se recorda o passado irreproduzível no presente e no futuro); segundo porque Guterres foi a maior oportunidade que tivemos e vamos ter nos próximos anos de poder dizer que à frente do Governo e do Estado temos um político como me habituei apensar os políticos.
Guterres tinha tudo para ser um Primeiro-Ministro ímpar. Tinha a inteligência, a cultura e a mundividência necessárias. Até lhe desculpava aquelas poses beatas.
Foi o último dirigente político de topo verdadeiramente bem preparado.
E no entanto falhou. A meio da corrida, saiu da pista. Regressou aos balneários, tomou um banho e foi para casa, como se não fosse nada com ele.
E se é verdade que a responsabilidade é em grande parte sua, porque lhe faltou, nos momentos decisivos, um par de frutos vermelhos que dão cor às paisagens ribatejanas, não é menos verdade que na necessária concentração para chegar ao fim, Guterres não reparou na lama que lentamente invadia a pista de tartan.
O mais curioso é que muita dessa lama, depressa transformada em pântano, foi lançada pelos seus próprios camaradas com uma mão, enquanto que com a outra davam palmadinhas nas costas de Guterres.
Ora, o homem sendo cristão, não é propriamente Cristo e não pôde, como o verdadeiro, pairar sobre as águas. Mais. Como não tinha nenhum plano tecnológico, nem sequer podia utilizar um hovercraft para passar o pantanal, ou pelo menos um daqueles barquinhos que se utilizam nos everglades norte-americanos.
São exactamente os mesmos sargentos de caserna que passo a passo fazem o mesmo a Sócrates e não há hovercraft que consiga passar tanto lamaçal.
Esperemos que Sócrates, não tendo a espessura política de Guterres, tenha pelo menos maiores frutos daqueles que dão cor ao Ribatejo.
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