11/11/2004

UMA FAMÍLIA PORTUGUESA

- Não gosto da avó! – Lamentou-se o menino Pedrinho.
- Come só as batatas... – Quase lhe sussurrei, entre o fogo cruzado que se estabelecera na mesa, pedra lançada da funda entre arrufos de torpedeiros.

Os almoços de família eram sempre uma festa. Apesar de estarmos disseminados por diversos cantos da floresta de betão dos arredores de Lisboa, pelo menos uma vez por mês toda a gente se reunia, na casa da Tia Gertrudes. No Verão, até o primo Rogério vinha de Valenciennes, no seu Mercedes de caixa automática.

Somos uma família unida e sólida. De uma forma peculiar alcançámos até um certo estatuto social. Não aparecemos na “Lux” ou na “Caras”, mas somos presença constante na “Casa & Decoração” e na “Meubles de Cuisine”. Fomos até capa da “Housekeeping”.

Longe vão os tempos em que o bisavô Gustavo começou a fazer pernas-de-pau na arrecadação do quintal, depois de convalescer do acidente com o Pepe, o burro espanhol. Fazendo uso da proverbial capacidade lusitana de desenrasque, o bisavô Gustavo, vendo-se perneta, logo mudou o negócio de produção de castanha da família para construção de pernas-de-pau. Hoje somos um conglomerado na área das próteses, os tipos da General Motors vêm comer-nos à mão sempre que querem montar uma nova caixa automática numa dessas caixas de fruta a que chamam veículo utilitário, os melhores 10 assassinos da Yakuza usam polegares postiços feitos na nossa fábrica do Seixal. Não tivesse o bisavô Gustavo, já completamente toldado pelo bagaço que o compadre Julião trouxera da terra, insistido em montar o Pepe, que assistiu, na sua incredulidade de burro, à tentativa certeira do bisavô em montar no burro que não era, aterrando na charrua meia coberta de ervas, que jazia entre outros utensílios que não serviam para nada e o terreno estaria hoje transformado num prédio deslavado, com um nome pomposo, tipo Varandas do Trancão, comprado por um senhor de cabelo ralo e oleoso, acompanhado pela sua esposa gorda, com as pregas do abdómen disfarçadas sob um padrão tigre da malásia made in taiwan.

O bisavô começou por vender as suas pernas-de-pau nas feiras e romarias, com a ajuda da bisavó Natércia, foi conseguindo aquilo a que hoje se chama uma carteira de clientes e passado pouco tempo estabeleceu-se na Rua do Arsenal, entre lojas de ferramentas e de bacalhau. Foi ainda com sede na esconsa e mal iluminada loja que o seu filho, o avô Paulino, conheceu marinheiros de todos os cantos do mundo, aos quais entre conselhos sobre as melhores putas da zona, mostrava os aparelhos que a sua imaginação fervilhante ia criando. Foi assim que o negócio prosperou, através dos marinheiros que de Lisboa levavam as nossas magníficas pernas-de-pau e lancinantes esquentamentos.

Hoje temos uma cadeia de lojas espalhadas por todo o mundo. Abrimos recentemente uma loja em Vladivostok, onde lançámos o nosso modelo Nikita, uma perna-de-pau “high tech”, forrada a marta.

O negócio continua no entanto a ser familiar, resistimos serenos, às tentativas de aquisição hostis, ao linguajar de ambulância de pequeninos homens amarelos, desconfiados dos “entonces hombre, somos hermanos, piernas de madera Gaspacho, suena agradable” que ciclicamente nos batem à porta da fábrica do Seixal, à caspa invisível de tipos apátridas, de fato azul escuro e traços secos que falam uma língua esquisita e monocórdica, corcundas dos estudos e estratégias de cordel que carregam debaixo dos braços.

Somos, é certo, um bocado excêntricos. Com a mania de experimentarmos em nós mesmos os produtos, antes de os lançarmos no mercado, decepamos regularmente uma perna ao tio, um dedo ao primo, um braço ao sobrinho, o que a maior parte das vezes se revela um sucesso. O primo Elias, por exemplo, que antes de lhe arrancarmos a mão esquerda, numa tarde de Domingo invernoso, era duro de ouvido, incapaz de trautear “A minha casinha”, passou a tocar o “Bhoemian Rapsody” só com o estalar dos dedos, graças à mão cibernética que lhe instalámos, modelo feito de propósito para a NASA. Como achamos um desperdício, nestes tempos de crise, desaproveitar alimentos e temos uma alergia hereditária à carne de porco, guardamos os membros decepados na arca e sempre que a família se reúne, temos iguaria.

Um pequeno desvairo, se quiserem, mas quem não tem pequenos desvairos? Da mesma forma que os bares de alterne se enchem de vendedores e escriturários aos dias 30 de cada mês, para o seu desvairo mensal, a família reúne-se para o seu, muito mais higiénico, diga-se.

Aliás, vendo bem as coisas, a nossa pequena excentricidade nem é particularmente aberrante. Eu, por exemplo, entrei uma vez em casa do Ernesto, meu colega da 4ª classe e para além de ter que me descalçar à entrada, deparei com África na Damaia. Tigres no tapete do chão, elefantes de loiça e de plástico a imitar marfim por todo o lado, sapos, crocodilos, cães, gatos, um rato enorme empalhado, um animal esquisito em cima do sofá, obeso e peludo, ao qual a mãe do Ernesto limpava o pó, que vim a saber mais tarde chamar-se Floriano, pai do Ernesto. E enquanto eu, receoso, me anichava por trás do bengaleiro, a Dona Ermelinda, esposa do animal esquisito e mãe do catraio, perseguia, com ímpetos de marine dopado, o único animal vivo que por breve distracção sua entrara em casa, uma melga minúscula de motor afogado e condenada a morrer espalmada pela raquete de ténis empunhada pela santa senhora.

Isso sim, é excentricidade.

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