11/11/2004

RAZÃO MÍNIMA GARANTIDA


Há uns anos foi instituído o Rendimento Mínimo Garantido. Num país onde muita gente não tem nada garantido, isto é, assegurado para lá de qualquer acontecimento, não deixa de ser espantoso a celeuma que o mesmo levantou em certas elites, pese embora a aceitação generalizada ou pelo menos maioritária.

É um traço marcante da sociedade portuguesa: a aceitação obediente e mansa das hierarquias sociais, mesmo quando injustas ou injustificáveis, convivendo com uma mesquinhez abjecta. Aceitamos com “naturalidade” que o filho do “empresário”, com um historial de incumprimento social vasto, sacralizamos mesmo esse comportamento, mas somos intransigentes com o vizinho do lado, se por acaso este sobe nem que seja um degrau na sua vida. Denunciamos mais depressa o tipo que tem um biscate que o tipo que explora mão-de-obra barata e ilegal. Vociferamos com o fura-vidas que se recebe o rendimento mínimo garantido, mas aplaudimos o “patrão” que ciclicamente leva as suas empresas à falência, para logo renascer 20 metros ao lado.

Este “espírito de resignação” a uma suposta “natureza das coisas” faz com que consideremos que o tipo que não paga impostos, que mantém o filho na Universidade à borla e que adquire propriedades com a ajuda do Estado é “esperto”. Pertence a uma outra estirpe social. Safa-se. Serve de modelo.

O tipo que arranja um biscate de fim-de-semana é um energúmeno. Se compra um automóvel melhor que o nosso, ficamos alerta, comentamos amargamente com os amigos e conhecidos que “ali há gato...”. Se compra uma casa nova, ficamos esclarecidos. Anda concerteza metido num negócio escuro...

O trágico deste traço é que ele não se altera por decreto e duvido que se altere com campanhas. Está profundamente enraizado. Dentro de cada um de nós continua a existir um gene feudal, que repele instintivamente qualquer tentativa de construir uma sociedade verdadeiramente democrática e justa.

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