1/24/2004

O ÊXTASE NA CAIXA DE CORREIO


Caros leitores,

Hoje estou particularmente satisfeito. Contrariando a onda de pessimismo que se abateu sobre o País, por causa do PIB (essa criatura bizarra e imensurável) do Pacto, do PEC, da PQOP, diria mesmo que hoje estou radiante.

Tudo porque ao abrir a minha caixa de correio, normalmente cheia de facturas, vislumbrei uma carta do Serviço Local de Finanças. Trémulo, quase febril, apalpei o seu conteúdo, como quem sente pela primeira vez os contornos de um corpo há muito desejado. As minhas mais secretas esperanças confirmaram-se quando desfiz o invólucro: era o meu novo cartão de contribuinte! Johann Strauss entrou subitamente no meu prédio, seguido de uma pequena orquestra; os candelabros acenderam-se. A música invadiu aquele pequeno átrio, em crescendo. Deus existe e apresenta-se em tons de verde. Quase três anos depois de o ter pedido, eis que o pequeno gnomo, que imediatamente baptizei como Manelito, chegava-me às mãos.

Subi as escadas com o Manelito nas mãos, sentindo os meus sinais vitais a voltarem ao normal. Pousei-o na minha secretária e resolvi fazer o que qualquer homem decente faria. Peguei no velho e carcomido cartão de contribuinte e preparei-me para as suas exéquias. Eu sei que os meus leitores vão pensar que sou um sentimental, mas a verdade é que costumo sepultar com pompa e circunstância de Estado todos os meus cartões. Embrulho numa folha de papel de 25 linhas azul, claro, cada um dos que deixam de estar em vigor ou caducaram. Com um esmero digno de funcionário público, tenho uma velha gaveta carunchosa, que serve de Cemitério. Tudo organizado por talhões. Lá está o talhão da ADSE, com 27 inumações; o talhão da Segurança Social, com 12; o da DGV, onde repousa a minha antiga carta de condução, e assim por diante. E no fundo da gaveta, ergue-se, altivo, um velho carimbo preto e sóbrio, ostentando a inscrição INDEFERIDO com orgulho e garbo.

O Manelito passou a andar comigo 24 horas por dia. Tenho-o mostrado a todos os amigos, que o olham com inveja. Gostaria de frisar que são entes como o Manelito que alteram a nossa mundividência de forma imperceptível mas decisiva. Eu já decidi que vou permanecer celibatário ou pelos menos se casar não vou alterar o nome, só para não perder o meu novo amigo. Nem vou mudar de casa. Hei-de ficar nesta até que as paredes caiam, que o tecto desabe e mesmo aí, morrerei de pé, como todo o contribuinte recto.

Se os meus leitores pensam que tudo o que escrevi até agora foi uma gorada tentativa de ironia desenganem-se. Até o subdesenvolvimento tem as suas cores alegres. Se eu vivesse num País com um verdadeiro Estado, em que alterar os meus dados fiscais ou civis fosse um acto simples e de efeitos imediatos, estes pequenos momentos em que simulamos que somos civilizados não existiriam. E perante isto nós só temos duas opções: o atentado frio, seco e certeiro ou a esquizofrenia. Profundas convicções humanistas e anti-belicistas levam-me a escolher a esquizofrenia. Por enquanto.

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