Começo esta “crónica” com um compromisso. O de tão depressa não voltar a falar da gestão pública local, como o fiz em duas anteriores crónicas, embora considere que o assunto tem todo o cabimento num jornal de âmbito regional, como o “Triângulo”.
Defendi nestas mesmas páginas que os recursos públicos administrativos deviam ser partilhados entre as diversas instituições e que a educação devia ser um projecto debatido e assegurado pela comunidade. Julgo que falta um outro vértice para que finalmente deixe de maçar os leitores (os poucos que ainda têm paciência para a minha petulância) com estas questões.
Todo o político local que se preze entende, ou simplesmente é forçado pelas circunstâncias a entender, que deve reivindicar o maior número possível de serviços públicos (repartição de finanças, conservatórias, notários, etc.) no seu círculo eleitoral, na sua cidade, vila ou aldeia.
Sendo o objectivo legítimo, o seu conteúdo é de todo anacrónico. Isto é, o que normalmente se pede é uma repartição de finanças, uma conservatória do registo civil ou predial, uma delegação da segurança social. Isto implica a criação física e administrativa de cada um destes serviços, com os inenarráveis concursos públicos para aquisição de bens e serviços, a transferência de arquivos destes serviços para os novos que se instalam, de recursos humanos, etc., etc.
Isto é, repito, anacrónico. O discurso político vive ainda no paradigma da administração pública tipo mangas-de-alpaca. No mundo real e quotidiano, há muito que tal modelo deixou de fazer sentido. Por duas razões.
A primeira é que hoje em dia a maior parte dos actos entre as pessoas e o Estado pode ser feita utilizando recursos tecnológicos que dispensam o contacto físico.
A segunda é que eu exijo que o dinheiro dos meus impostos tenha uma aplicação racional, para que seja viável pagar cada vez menos.
Com um computador e uma ligação à Internet é possível entregar o IRS ou pedir certidões do registo predial. Quem é que no seu perfeito juízo prefere estar numa fila, a ouvir o matraquear dos sacrossantos carimbos?
Conceitos como o do Balcão Único, em que as pessoas tratam de todos os assuntos num único sítio são o caminho. O PAC (Posto de Atendimento ao Cidadão) é, embora de forma tosca, a primeira experiência nesse sentido.
Por isso entendo que o discurso político a nível local deve mudar. O que se deve estudar, planear e concertar com a Administração Central é a melhor forma de implementar esses balcões únicos locais e não reivindicar, demagogicamente, a instalação de uma repartição ou de uma conservatória. Reivindicar significa, no discurso político instalado, fazer pedidos a terceiros para desviar a atenção da nossa própria incapacidade.
Infelizmente o carrossel da politiquice tem por hábito apear ou pura e simplesmente ignorar quem quer mudar o rumo da charanga.
Até ao dia em que o responsável pelo carrossel puxe a ficha e se acabe a festa.
9/28/2006
9/14/2006
OS RICOS QUE PAGUEM A CRISE
Quando falamos do nosso estado de desenvolvimento, costumamos colocar-nos entre os mais pobres dos mais ricos. Em tempos de crise aproximamo-nos dos mais ricos dos mais pobres e não “descemos” ao seu grupo por circunstancialismos geográficos.
Lembrei-me há dias da célebre ideia pós-25 de Abril que proclamava “os ricos que paguem a crise”, porque na nossa sociedade continuam a existir pessoas e grupos que entendem que essa frase ainda faz sentido.
Acontece que não conheço nenhuma sociedade humana na qual os ricos tivessem algum dia pago a crise. E isto acontece independentemente de eu considerar que os ricos podiam pagar a crise.
Convém antes de mais delimitar minimamente o que é um “rico”. Para mim, que ganho menos de 1000 euros por mês, rico, do ponto de vista psicológico será o tipo que por mês ganha 100 ou 200.000 euros por mês. Mas sociologicamente não é rico. Faz parte da classe média.
O verdadeiro rico é uma criatura que não aparece nas revistas cor-de-rosa, que vive num mundo à parte, em que os filhos vivem num mundo à parte. Bem pode o arrivista colocar os filhos no mesmo colégio de referência, pô-lo nas mesmas escolas de equitação, que nunca passará de uma imitação, no caso cara, mas imitação.
O problema é que confrontados com a riqueza, o que nós queremos (legitimamente) é ser um pouco mais ricos e temos como referência o vizinho e o seu bmw, o patrão e as suas férias em paraísos tropicais e mantemos com essas referências uma relação ambígua, esquizofrénica, até. Por um lado admiramos a sua esperteza em fugir aos impostos, sonhando ser como ele e por outro temos um desejo íntimo de o poder quilhar.
Enquanto os meninos se esgadanham para apanhar os melhores chupas, os ricos desfrutam calmamente souflés.
O horizonte da classe média começa num bairro de subúrbio, dai para uma urbanização no mesmo subúrbio, depois para um subúrbio um bocado melhor, para uma vivenda (agora diz-se moradia) e a cereja cristalizada em cima do bolo, uma casa de férias no Algarve.
Eis o retrato de sucesso que a maioria almeja alcançar.
Sem pessimismos existencialistas ou optimismos retirados de livros de bolso de psicologia, o mais provável é que cada vez mais existam pessoas que vão parar na urbanização do mesmo subúrbio, cada vez mais pessoas a ficarem no bairro dos pais ou na habitação social. Os ricos vão continuar ricos e etéreos. A solidariedade é uma palavra estranha no seu vocabulário. A única solidariedade exequível passa-se ao nível da classe média, o que é complicado num país estruturalmente pobre e onde cada um tenta subir um pouco mais, dando pontapés e cuspidelas no que está um pouco abaixo de si, enquanto que, com o mesmo olhar de espanto e admiração que eu punha quando via as montras das marisqueiras na Baixa há 30 anos atrás, olha o trepador alguns metros acima, procurando perceber a marca dos sapatos para ir a correr comprar um par. Perdão. Dois ou três.
Lembrei-me há dias da célebre ideia pós-25 de Abril que proclamava “os ricos que paguem a crise”, porque na nossa sociedade continuam a existir pessoas e grupos que entendem que essa frase ainda faz sentido.
Acontece que não conheço nenhuma sociedade humana na qual os ricos tivessem algum dia pago a crise. E isto acontece independentemente de eu considerar que os ricos podiam pagar a crise.
Convém antes de mais delimitar minimamente o que é um “rico”. Para mim, que ganho menos de 1000 euros por mês, rico, do ponto de vista psicológico será o tipo que por mês ganha 100 ou 200.000 euros por mês. Mas sociologicamente não é rico. Faz parte da classe média.
O verdadeiro rico é uma criatura que não aparece nas revistas cor-de-rosa, que vive num mundo à parte, em que os filhos vivem num mundo à parte. Bem pode o arrivista colocar os filhos no mesmo colégio de referência, pô-lo nas mesmas escolas de equitação, que nunca passará de uma imitação, no caso cara, mas imitação.
O problema é que confrontados com a riqueza, o que nós queremos (legitimamente) é ser um pouco mais ricos e temos como referência o vizinho e o seu bmw, o patrão e as suas férias em paraísos tropicais e mantemos com essas referências uma relação ambígua, esquizofrénica, até. Por um lado admiramos a sua esperteza em fugir aos impostos, sonhando ser como ele e por outro temos um desejo íntimo de o poder quilhar.
Enquanto os meninos se esgadanham para apanhar os melhores chupas, os ricos desfrutam calmamente souflés.
O horizonte da classe média começa num bairro de subúrbio, dai para uma urbanização no mesmo subúrbio, depois para um subúrbio um bocado melhor, para uma vivenda (agora diz-se moradia) e a cereja cristalizada em cima do bolo, uma casa de férias no Algarve.
Eis o retrato de sucesso que a maioria almeja alcançar.
Sem pessimismos existencialistas ou optimismos retirados de livros de bolso de psicologia, o mais provável é que cada vez mais existam pessoas que vão parar na urbanização do mesmo subúrbio, cada vez mais pessoas a ficarem no bairro dos pais ou na habitação social. Os ricos vão continuar ricos e etéreos. A solidariedade é uma palavra estranha no seu vocabulário. A única solidariedade exequível passa-se ao nível da classe média, o que é complicado num país estruturalmente pobre e onde cada um tenta subir um pouco mais, dando pontapés e cuspidelas no que está um pouco abaixo de si, enquanto que, com o mesmo olhar de espanto e admiração que eu punha quando via as montras das marisqueiras na Baixa há 30 anos atrás, olha o trepador alguns metros acima, procurando perceber a marca dos sapatos para ir a correr comprar um par. Perdão. Dois ou três.
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