Faaa, Tahiti, Polinésia Francesa, 28 de Julho de 2005
Caros Leitores,
Confesso que não tenho a mais pequena vontade de escrever esta crónica. Só o faço porque a Administração da empresa que controla O Triângulo cumpriu a sua parte no acordo (isto é, pagaram-me integralmente 20 dias de férias no Tahiti) e eu sinto-me obrigado a cumprir a minha (20/25 linhas quinzenalmente).
Demorei quase dois dias a perceber que a cara de espanto da jovem nativa que me serve derivava dos meus gestos apressados e bruscos. Da forma como ataco a comida, como inalo o fumo do cigarro, de como transformo o mais simples gesto num letal golpe de artes marciais. Lentamente habituei-me aos movimentos de gravidade zero, ao gnomo strauss que atrás da orelha me pede que abrande.
Nos primeiros dias senti uma náusea constante, que como me explicou o médico local, se devia à ausência de semáforos. “O seu cérebro sente a ausência do verde e do vermelho, a sua adrenalina dorme cândida sem a emoção do amarelo. Asemaforite.” Diagnosticou. “Vai ver que lhe passa.”
Ainda não estou completamente curado e sempre que vejo Herr Hans, um enorme alemão que invariavelmente se dirige ao restaurante, ponho-me ao seu lado e ultrapasso-o, sem conseguir evitar que o meu braço direito simule uma redução de caixa e que as minhas pernas acelerem, enquanto o cumprimento, com ar de sacana.
Desperto por partes, cinturão negro de preguiça, encaminho-me para o espelho, sorrindo, com a serenidade de quem não tem que se escanhoar.
Observo, com complacência, a minha pele a escurecer enquanto faço zapping entre uma nativa que invariavelmente sorri e um crustáceo que se rebola na areia, beberricando cocktails coloridos e light. Ao fim da tarde já não sei se a CREL é uma estrada que liga subúrbios de Lisboa ou uma das personagens do Dragon Ball. O meu pico de ponderação é a escolha da refeição nocturna, ao som de uma música que parece desvanecer-se para logo se voltar a agitar. Por essa altura a CREL, a CRIL, o POLIS ou o FEDER são-me completamente estranhos e quando me surgem no cérebro fico convencido que fui raptado por extraterrestres, que esses sons são resquícios do que ouvi a bordo da nave espacial.
Pego no lápis com a modorra de quem passa os dias na horizontal, gozando os dedos invisíveis de um vento cálido, tentando cumprir a minha parte do acordo, mas limito-me a fazer rabiscos sem sentido.
O Carlos Cardoso e o Alfredo Vieira que me desculpem. Quando voltar, comprometo-me a escrever dez crónicas de seguida, que hoje germinam num recanto inacessível do meu cérebro, mas para já deixem-me dormitar nesta praia onde o som quase indelével do mar não corrompe o silêncio das coisas.
Saudações Polinésias