Venho hoje falar-vos do Flávio e da Tânia, que podiam ser meus vizinhos. Bem, meus vizinhos exactamente não, porque vivo num prédio que se afasta dos cânones “modernos”. O soalho não é flutuante, não tenho lareira nem jacuzzi.
O Flávio e a Tânia casaram-se há pouco tempo. Conhecem-se desde o liceu. O Flávio era um razoável jogador de bola, mas o insuficiente para fazer disso carreira. A Tânia sonhava em ser psicóloga desde a adolescência e o porquê dessa aspiração era precisamente uma das razões para tirar o curso. O Flávio fez meia dúzia de disciplinas do 10º ano enquanto a Tânia conseguiu tirar o seu curso de psicologia.
O Flávio, perante a impossibilidade de ser jogador de bola, viu-se na iminência de ir trabalhar para a fábrica do Sr. Gonçalves, amigo do pai. Começou por embalar shampoos, mas talvez porque é o que se chama um tipo vivaço ou porque ainda não estava narcotizado pelo cheiro dos detergentes, foi ganhando a confiança do Sr. Gonçalves, entre felicitações pelos golos que deixavam o patrão marcar, nas peladinhas de sábado de manhã, incursões devidamente projectadas ao escritório e “serões” nos dias em que o tipo também ficava. À borla, claro. O Flávio é hoje o responsável pela distribuição dos shampoos, tem um carrinho que lhe foi dado pela empresa e o fato e a gravata, assentam-lhe, apesar de tudo, razoavelmente bem.
A Tânia perdeu todas as ilusões sobre psicologia no 2º ano. Conseguiu arranjar um trabalho de secretária na empresa da mãe, onde com pânico dificilmente contido percebeu toda a sua ignorância, nos primeiros dias de trabalho. Miúda inteligente, compreendeu com a necessária rapidez que a sua progressão na carreira dependia mais do ciclo menstrual da Gaby (a sua cabeleireira, manicure e omnicure de sempre) que de quaisquer manuais de gestão de empresas. Habituou-se ao papel de bibelot eventualmente eficiente e ao suor frio dos clientes confrontados de chofre com a sua depilação exemplar.
Estão na fase do suporta-se razoavelmente. A Tânia suporta razoavelmente a limitação intelectual do Flávio, passado que foi o tempo do encanto com o “Bom Selvagem” e as suas explosões de testosterona às 5 da manhã na 24 de Julho. O Flávio suporta razoavelmente o ar presunçoso da Tânia, passado que foi o tempo da “miúda com estilo”. Hoje o estilo destila-se em zonas onde não se devia destilar.
Têm tudo o que um casal jovem precisa: o jipe, o televisor com o nome acabado em tron, já foram a Porto Galinhas e à República Dominicana, mudam de casa de 3 em 3 anos; Substituíram a avidez dos seus pais por batedoras e fornos eléctricos pela compra desaustinada de hi-fi e jacuzzis, seguindo assim o lento trajecto das aspirações da classe média: da cozinha para a sala e desta para a casa-de-banho.
O mundo começou para eles com o D’Artacão e com o País a caminho do progresso do Prof. Cavaco. Acreditaram piamente nisso, no Natal, no carro novo do pai, nos hipermercados, nos computadores, na Expo. Sentiram-se maravilhosamente com as teorias pedagógicas que tornaram a sua adolescência fresca e carefree. Não ligam a política mas gostam de tipos decididos e com “ideias”. Gostam da democracia liberal no Colombo mas não se importavam com um Estado autoritário sempre que ficam presos na A1. Não compreendem como é que “não se fazem as coisas” quando eles pagam “os impostos”.
Quando o Sr. Pinto Magalhães morrer, o seu filho vai provavelmente vender “o escritório” e a Tânia sente-se preocupada, ponderando, entre dois ferrero rocher, sobre o que é que vai fazer a seguir. O Flávio, mais ignorante e despreocupado, sonha em montar uma loja de tunning, mas está convencido que a “Gonçalves & Ramos” vai durar por muitos e bons anos e que ele vai chegar a braço-direito do Gonçalves, até porque o Gonçalves “tem muito dinheiro”.
Como nunca conheceram outro, acham que este seu mundo é eterno, que em momentos de crise podem não conseguir mudar de carro de 3 em 3 anos, que se calhar vão ter que ficar na mesma casa mais do que 5.
Nunca ninguém lhes explicou que há apenas 40 anos a classe média portuguesa a que pertencem era proporcionalmente menor e que nada prova que a subida de qualidade de vida seja estrutural, pelo contrário, parece ter pequenos pezinhos de barro e que portanto, pode esboroar-se; nunca ninguém lhes explicou que não existem mundos com benefícios e sem custos. No dia em que o Flávio e a Tânia não conseguirem trocar de carro de 3 em 3 anos, nem sequer de 5 em 5, o mundo escurece, o Colombo vai tornar-se odioso e o D’Artacão vai parecer um boneco irritante. Mas é só o princípio.
5/02/2005
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