2/07/2007

ABORTO

Devo começar por dizer que não tenho qualquer apreço pelo instituto do referendo. Preferiria uma sociedade onde as pessoas debatessem os seus problemas de forma sistemática e assim tomassem as suas opções.

Se não vejo o referendo como um instrumento razoável para qualquer decisão, muito menos o vejo como tal para resolver uma questão que é sobretudo subjectiva, de consciência íntima de cada um. O resultado prático da nossa consciência, isto é, a maneira como vemos e interagimos com o mundo não pode ser influenciada pela aritmética nem por ditaduras da maioria, até porque o conhecimento humano é, por natureza, falível, parcial, fragmentado.

O que quero dizer é que não se pode, em democracia, referendar a consciência e a ética de cada um, pelo que o referendo de dia 11 de Fevereiro não pode ter por objecto aferir o que é que cada um de nós pensa sobre o aborto.

Para a análise racional de qualquer problema, entendo que se deve sempre partir da realidade, do exame cru e objectivo dos dados, tanto quando é humanamente possível fazê-lo. Só depois de estabelecida a realidade factual é possível construir a nossa “concepção ideal do mundo” e projectar um caminho que da realidade chegue ao ideal.

Este “método de bolso” aplica-se também à questão do aborto. Os humanos criam regras que têm como pressuposto desenvolver condições para se percorrer este caminho de aproximação entre a realidade e aquilo que nos desejamos que ela se torne, pelo que uma lei só é operativa (se é justa ou não é outra questão) se tiver por base a realidade factual.

Por outro lado, temos uma matriz de pensamento atávica, continuamos a pensar como se Portugal estivesse “orgulhosamente só” para citar o provinciano que nos apascentou durante quase meio século.

Como apesar de não sermos integralmente europeus, estamos inseridos na Europa, é possível a um cidadão ir de Lisboa a Varsóvia sem anuência ou prévio conhecimento de quaisquer autoridades.

Portanto, uma lei que vise tutelar o feto de forma diferente da que lhe é dada por outros ordenamentos jurídicos nos quais podemos agir, não só não é eficaz como gera grandes injustiças. Porque qualquer um pode ir a Espanha praticar o acto que não pode praticar em Portugal. Ou seja, o dano (o aborto) não é menos grave por ser praticado em Espanha, porque aquilo que se visava tutelar (o feto) não fica mais protegido. Para quem defende que os outros não têm direito a abortar é tão grave que isso ocorra aqui ou em Espanha, porque de qualquer das formas o feto deixa de existir. A diferença é que em Portugal se pune.

É precisamente este o problema.

A Tânia, que tem 18 anos e frequenta o 10º ano, ficou grávida do Marco, numa tarde em casa de uma colega, entre o barulho das luzes. A Tânia sabe que se disser ao pai, corre o risco de ganhar uma maquilhagem gótica instantânea até porque o Benfica já não mantém a constância de resultados de outrora, que garantia a harmonia de milhões de famílias portuguesas e o pai pode estar particularmente mal disposto. Só para começar. Seguir-se-ia um monólogo de kickboxing, as coisinhas à porta e um “não voltes que para putas cá em casa já me bastou a cabra da tua irmã.”. O Marco, depois do choque inicial, conseguiu falar com a sua mãe, que encaminhou a Tânia para uma “clínica” na Amadora, onde, apesar dos esgares de mecânico auto da abortadeira, a coisa foi feita. Claro que dificilmente a Tânia terá algum dia um filho, porque a fisiologia humana é bem mais complexa que um motor da fiat.

A Marta, executiva na casa dos 30, viu-se grávida quando menos esperava. Provavelmente confundiu as pílulas de emagrecimento com a pílula contraceptiva, o que é natural, porque acorda tão cedo que para não incomodar ninguém, faz tudo às escuras. O que é uma chatice, logo agora que as 14 horas de trabalho diário estão prestes a dar frutos, no caso uma bela cadeira em forma de meia melancia a que os directores da empresa têm direito. Uma gravidez neste momento seria a destruição do trabalho dos últimos 5 anos. Por isso, falou com o marido e num fim-de-semana foram a Badajoz, trataram do assunto e voltaram a tempo de ver a crónica semanal do Prof. Marcelo.

A Tânia corre o risco de ir parar a um hospital, porque o mecânico, mais habituado a camiões TIR que a mecanismos delicados, deixou-lhe as entranhas exangues. Corre ainda o risco de algum grilo falante de bata branca a denunciar.

A Marta não corre riscos. Na segunda-feira está na sua secretária, com a proficiência de sempre e a atitude de cão-de-fila que a administração da empresa tanto aprecia.

Com a lei e a prática que temos, sedimentamos o traço que nos distingue dos países verdadeiramente civilizados. Ao proibir-se em Portugal uma prática que é permitida aqui ao lado, eterniza-se a diferença entre ricos e pobres, ou para ser mais exacto, entre os informados e os que não estão informados. Até porque não é exactamente uma questão financeira. Provavelmente um aborto é mais caro na Amadora do que em Badajoz. É uma questão de acesso a informação, de possibilidade factual de recorrer a esses meios. Quem está desesperado, numa situação frágil e de emergência, recorre a tudo o que puder. O carácter secreto, clandestino, obscuro do aborto torna os frágeis em mais frágeis ainda.

Por tudo isto, a atitude mais inteligente é a que permita trazer o aborto à superfície, que o retire da obscuridade. Não há divisão entre os adeptos do sim e os adeptos do não, porque estes não conseguem garantir com a mínima seriedade que as mulheres portuguesas vão deixar de abortar. Se querem, como eu e a esmagadora maioria da população, que o aborto deixe de ser uma prática comum, se reduza e eventualmente se extinga, devem começar por aceitar que existe e que a melhor maneira de o evitar é promover a informação, serem melhores cidadãos, mais solidários, voluntariamente prestarem serviços de aconselhamento às grávidas e não fazer um julgamento ético sem qualquer contraditório.

Não está em causa no referendo, repito, uma contabilização de quantas pessoas votam sim ou votam não, porque a ética não se vota.
As opções são simples. De um lado estão aqueles que querem resolver o problema começando por reconhecer a sua existência. Do outro estão aqueles que sabendo que ele existe, não o reconhecem, na estúpida esperança que desapareça.

Este referendo é um confronto entre a inteligência, a capacidade de compreender o Mundo e o obscurantismo. Puro e duro.

No dia 11, espero que não optem pela indiferença que nos doma e que não tenham medo de ser inteligentes.